Março arrastou minha cara no asfalto e eu trabalhei como louca para mim. A newsleterr chega no último dia de março como uma despedida e um pedido: abril me diga sim. É nessa energia caótica que escrevo, entrando de cabeça em todos os estágios possíveis da agonia. Descrevo meu março como uma manhã contínua de calor em que eu estava vestida com pijama de short verde de poliéster e camiseta azul marinho de algodão e pelos de cachorras e gata; limpando respingo de lágrima da lente do óculos enquanto ouço música muito feliz num fone de ouvido que tem como principal função evitar a realidade.
3 coisas sobre março:
1. Poucas vezes senti ranço com tanta intensidade e dificuldade de explicar quanto experimentei e experimento com algumas das participantes do BBB23. Em alguns momentos, me senti aquelas senhoras (minha mãe, minhas tias e minha avó) praguejando contra a televisão. Preciso elaborar isso melhor porque tem aí uma parcela de tudo que sinto por mulheres que apoiaram o governo genocida, reprodutoras do machismo, homofóbicas e, principalmente, racistas mas que continuam a vida como se normal fosse. É algo pra elaborar.
2. Antigamente, na minha época de adolescente analógica, eu fazia agenda. Estudava numa escola de freiras e via as meninas ricas com agendas lindas e adesivos e recortes da Capricho e etiquetas de roupa de marca. Eu só tinha papel, revistas que eu pegava na casa das amigas do bairro, tesoura com ponta e cola. Depois de escrever isso, fiquei pensando como qualquer manifestação artística por mais simples que seja é pautada pela condição social. Lembrei de uma cena da série Pessoas Normais em que há uma conversa sobre acesso a arte e dinheiro. É uma cena bonita porque ao longo dos episódios a gente percebe o dinheiro pautando esse relacionamento e ali, naquele momento, a conversa acontece meio que de forma silenciosa. A gente sabe que é pobre. Claro que tem gente de direita em negação achando que seu palio prata vai ser tomado pelos comunistas, mas a gente segue. Até evito ter um palio que é pra não cair nesse lugar. Pra mim, a agenda tinha uma coisa de companhia também. Foi nesse espaço que escrevi meus primeiros textos. As jovens chamam essa prática de scrapbook, que sempre vi aparecendo em filmes como algo pejorativo. Algo que é feito pelas tias dos gatos. Então, prazer, tia das cachorras. Outro dia, no meio de uma crise de ansiedade, resolvi pegar umas páginas e fazer isso. Me ajudou muito. Vou testar com mais seriedade. A meta é: reduzir o café; meditar em momentos além do desespero; canabidiol (tomo pra lá de anos) e agenda. Tem outro fator relevante que é: esse processo é meu. Ao contrário das leitura e da escrita, é algo que posso fazer exclusivamente pra mim. É bom ter algo assim.
3. Vou mudar pra uma casa. Vou trocar um apartamento na região central por um bairro residencial. Estou falando de silêncio, quintal, vizinhos idosos, corredor, abrir a porta da frente, flor na calçada e caminhão de ovo na rua. Segura minha mão, gente. Abril vem muito aí. Mas me deixa terminar o que precisa ser feito em março, por favor.
Março foi um mês que trabalhei, hora a hora, pra manter minha saúde mental e meio que deixei a física ir com deus. Todos os dias, eu anotava tudo junto com o aviso “pra não surtar”. Mas meio que surtei assistindo Tudo em todo lugar ao mesmo tempo (2022), na véspera do Oscar que todo mundo sabe o que rolou.
O filme me afetou num lugar muito delicado e chorei de saudades da minha mãe por dias seguidos e, em outros, fui chorando por mim mesma. Fui acompanhar a discussão sobre o filme e senti muita falta de alguém que falasse sobre ser filha. A gente fica muito focada na Joy (Sthefanie Hsu) enquanto filha mas existem universos em que a Evellyn (Michelle Yeoh) não é mãe (entre os que vemos, no que ela é uma atriz e no dedo de salsichas) mas em todos eles, absolutamente todos, ela é filha.
Assim como Joy e Deirdre.
O filme mostra toda aquela coisa dos pais, mas a mãe da Evellyn que aparece só nos momentos de despedida, seja ela indo embora ou permanecendo. Ela fala do pai que a deixou ir mas, em qual universo, a mãe sem nome de Evellyn disse fique. Quando penso que esse também foi o ano de Aftersun, penso que foi o ano das mães ausentes. Lembrei das sessões de análise e como o fato de eu vir de uma longa linhagem de filhas abandonadas e, na minha vez de ser mãe, percebi que todo esforço pra quebrar esse ciclo é inútil porque ele envolve o outro. Aftersun me soa uma coisa coisa o surfista que tem três filhos, a vida na mochila e quebra diante da mínima responsabilidade e contato com a realidade.
Voltando. Senti muita falta de ter conhecimento sobre o relacionamento entre as pessoas que geram e as que são geradas. Se você souber por onde começar, por favor, me diga. A impressão que tive é que a gente pensa e categoriza o corpo da mãe, fala da maternidade e raras vezes olhamos pra esse lugar de filha tendo ele mesmo como ponto de partida. Deixando de lado a óbvia ironia da Joy ter esse nome e todo debate sobre sua condição, fico pensando na escolha da luta ou salvação acontecer no universo onde a Evellyn falhou em tudo. Inclusive como filha? O que uma filha deve fazer pra além da tábua dos 10 mandamentos? Considerando que a pedra Joy precisou de uma pedra Evellyn para estar ali, quem estaria ali com a pedra Evellyn? Lembro que ao engravidar, um dos primeiros contatos com a realidade foi entender que uma parte de mim não era eu. Na condição de filha, tenho me ocupado em pensar nessa existência partindo do que ela é. A questão é entender o que, de fato é uma filha.
O que é uma filha?
meses atrás fiz uma oficina com a Natália Borges Polesso - A escrita da ruína - e, desde então, tenho pensado nos escombros que encontro pelo caminho e sobre quais desejo escrever. Num dos exercícios de escrita, fiz o texto abaixo. Não é um conto ou novela ou romance, mas é algo. Talvez começo, talvez meio. Mulheres que são enlouquecidas tem ocupado minha mente desde o dia em que escrevi esse texto. Pergunto (pra mim) o que é saudável e como não ser enlouquecida por ser mulher.
1.
Era pra ser um escondidinho de carne moída com mandioca mas faltou mandioca para cobrir a carne. Moída. Ali na biblioteca pública eu procurava por um livro, qualquer livro, que pudesse consertar a falta da mandioca; o molho de tomate que ficou ácido; os motivos reais da discussão virulenta entre minha namorada, minha filha e eu sobre quais talheres usar ou não para retirar comida; a decisão de morar com uma mulher enquanto eu educo sozinha uma adolescente; a falta de ânimo pro trabalho; a constante dor no seio e até a dor no dente quebrado que anuncia um canal.
Chovia bastante e havia pessoas nas mesas, lendo ou estudando na Biblioteca. Olhei pra cada lombada com a calma de quem namora prateleiras de farmácia. Tirei livros que pretendia ler em algum qualquer um momento da vida e pude conhecê-los lidos e relidos fora do plástico. Tenho mesmo que aceitar tudo o que me é dito? Eu já fiquei quieta mãe. Enquanto elas discutiam e eu pedia pra alguém qualquer alguém fosse adulto, chegou a conta de luz 30% mais cara que no mês passado e 90% mais cara que doze meses atrás. Bufo no apartamento que é infinitamente menor que a casa anterior. Vendi meu ar-condicionado para pagar a terapia.
Sem vestígios de adultos, fugi de casa e cheguei na Biblioteca. Peguei guarda-chuva amarelo porque tive cansaço de usar o vermelho. Entre os livros, lembrei que usava meu pijama cinza.
Abre o olho dói o quadril cansaço 5h32 xixi lágrima coriza soluço café puro notícias no youtube varrer a calçada do twitter disputar o canto esquerdo do sofá verde com a cachorra idosa e desviar da carência da caramela xixi na cozinha cocô na varanda instagram café puro bom dia dormiu bem te amo boa aula café consegui acordar água digita digita oi amor que bom que o remédio fez efeito já vou tomar café contigo café preto escuta escuta escuta apaga digita digita digita alarme passeio com as cachorras exercício pro quadril força nos glúteos e-mail agradecemos seu interesse não foi dessa vez quem sabe na próxima digita digita digita quem sabe se eu mudar isso aqui no currículo digita digita digita apaga digita digita mensagem de apoio você vai conseguir é abençoada interfone senhora chegou caixa aqui na portaria verdade é do 701 digita digita alarme penteia o cabelo escova o dente sorri pro espelho zoom digita apaga digita teams o que vamos comer? ocupada de novo?
A blusa cheira carne exposta.
Na chuva, debaixo do meu guarda chuva amarelo, o cheiro não parecia tão forte quanto no momento em que a Bibliotecária veio me pedir um depoimento. Alho, cebola, miolo do acém, pimenta, sal, lemon pepper, páprica doce e alho poró. Molho de tomate, leite de coco e meia colher de sopa de açúcar. Claro que aceito. Vai ser um prazer. Meu cabelo está pra cima, muito pra cima e talvez com aquele elástico preto esgarçado e cheio de bolinhas. Será que ela sente cheiro?
Fugir é isso? Corri para a Biblioteca em busca de exílio e me deparo comigo. Com todas que quis deixar para trás. Do mezanino olho para aquelas pessoas que podem folhear livros numa tarde de chuva no meio da semana. Que tipo de gente é essa? Vejo minha filha descer a rua. Na mesa atrás de mim, um rosto conhecido. Enquanto ela sobe para encontrar a amiga, minha namorada liga de maneira insistente. Ignoro. Desligo. Desligo. Nós tínhamos planos. Quando você saiu? A gente tinha planos. Correios, cartório e mercado. Escolhi muitos livros que espalhei pela mesa. Todos escritos por mulheres, talvez elas saibam. Eu não. Calma, Calma, também tudo não é assim escuridão e morte., diz Hilda. Antes que eu queira responder, ela me diz (ou à Lygia) que Calma. Não é assim. É assim como, gente? O que a gente tem que fazer por silêncio? A quem interessa enlouquecer uma mulher? Fujo de novo.
No café da quadra seguinte, às 14h39 de um dia chuvoso da semana, as pessoas eufóricas em seus celulares com múltiplas câmeras, suas calças jeans escuras, casacos de nylon, risos de dentes brancos. Não quero nada mas peço um café de bule acompanhado por um pedaço de bolo de chocolate recheado com coco queimado e leite condensado. A música está alta. Queria usar quem sabe uma camisa de força. Vendi o ar condicionado para pagar a terapia. Era um daqueles modernos, com ar quente e frio, filtro para vírus e bactérias. Quanto será que veio a conta de luz de quem comprou meu ar condicionado que vendi para pagar a terapia?
A primeira gargalhada escapou. Alta. Muito alta. Mais alta que a música, que os barulhos que os casacos de nylon fazem enquanto as pessoas ligam seus celulares com suas múltiplas câmeras para filmar minhas gargalhadas que agora misturadas aos gritos e as louças que jogo no chão meio que parecem assustar alguns deles. Rasgo no dente a roupa com cheiro de carne exposta e quando penso em acrescentar o barulho da minha unha de acrílico feita para agradar as pessoas da firma contra a pele do meu rosto aos meus rosnados e gargalhadas ouço alguém um ninguém dizendo chama o bombeiro que ela tá louca.
Tento ver a Biblioteca da janela mas não consigo me levantar. O teto da ambulância é branco mas está sujo. A mulher limpa deve estar de folga. Será que na casa dela tem silêncio? Faltou mandioca, Lygia. Calma, Hilda, calma. Eu tinha planos. Tinha. Eu.
A vontade de achar esta fuga final, da gargalhada, das louças, mas não sei como chegar, não posso chegar, não quero chegar nela; depois não sei se saio ou se vou querer sair.
Olá, lendo seu texto, especificamente a relação mãe-filha, lembrei dessa música da bjork "Quicksand" que tenta capturar muito desse sentimento que você descreve, é a última música do disco Vulnicura. Excelente texto e newsletter, abraços!