David Bowie, cloroquina e embrutecimento
Oi. É direto e honesto, né?

Oi, tudo bem?
A primeira coisa que fiz nessa semana foi ir ao supermercado. Nem bem nove horas e eu já tinha colocado muitas coisas no carrinho e notei que estava com fome. Meu estômago roncou alto como se o copo de café não tivesse existido. Lembrei de quando tomávamos café no mercado enquanto tocava em todos os produtos procurando por algum sinal misterioso de que aquele era o escolhido. Agora, não mais. Tocou, levou. Comprei o básico e mal consegui reagir à agressão do aumento de preços. Vi dois funcionários do mercado lendo o código de barras dos produtos que estavam na prateleira e me lembrei daqueles anos de inflação. Duzentos reais. Podem colocar o vira-lata caramelo na nova nota de 200 reais que isso é representatividade. Estávamos ali, bem perto de sermos um país, mas não rolou. Tipo quando a pessoa diz amar o vira-lata caramelo mas paga três mil cloriquinas num Pug. Não quero continuar com esse argumento pois exausta. Nunca achei que seriam apenas 15 dias (posso estar errada) de isolamento, mas também nunca pensei em 150. Não pensei. De verdade. Nem tenho pensado mais.
No começo, quando havia urgência de informar, eu acompanhava tudo e fui entrando num estado emocional deplorável. Eu tinha que saber porque saber é parte essencial do meu trabalho. Mas então, todos nós, o povo, nos acostumamos com as mais de mil mortes no dia até fingir algum horror quando chegamos ao cem mil na semana passada. Não culpo nos culpo, nós o povo, pelo estado em que estamos. Mas me questiono quando nos embrutecemos tanto. Entrei no mercado, peguei o que havia pra pegar com alguma urgência e não levei as flores de doze cloroquinas que quis para economizar. Ainda penso nelas. Brancas, pequenas e delicadas. Estava com dor de estômago de fome - foi o que disse para mim - e parei no café que já pode abrir e tomei um café coado grande com um pão de queijo. O primeiro em quase seis meses. Depositei minha máscara na mesa e não pensei. Tomei o primeiro gole, olhei as flores e senti o café rançoso.
Chamei o uber e voltei na expectativa de que o mercado entregasse tudo na manhã. Não há nada para cozinhar em casa. Escrevo enquanto minha filha recebe as compras. Isso mesmo, depois das cinco. Continuo com fome. Enquanto isso, brotam no meu WhatsApp cantadas de caras que querem que eu dê uma revisadinha no texto deles de graça. Tipo, eles não tem grana, saca? Não respondi, não responderei. Caras me abordam pedindo que eu trabalhe de graça. Minas me abordam dizendo que elas tem um projeto e que, se aprovado, eu serei contratada e receberei por meu trabalho. Mas acho estranho quando a pessoa copia e cola um trecho de um trabalho dela na minha janela e diz: é assim? Não sei se é assim - mentira, sei como é e não é do jeito que ele fez - , mas sei que é assim que eu pago o valor abusivo do arroz e feijão no mercado. A primeira coisa que aprendi na terapia é a diferença entre preço e valor. Agora estou colocando isso em prática tipo: eu tenho valor e um cara que faz isso sequer sabe meu preço.
Ando bêbada com as emoções produzidas pela entrega do livro. Tem tanta gente foda - em sua maioria mulheres - envolvidas no projeto. Mulheres que eu admiro com força e respeito. O processo foi tão lindo por ser maior do que imaginei. Também foi tão dolorido por ter sido feito em meio à pandemia. Escrever sobre as minhas perdas enquanto me embrutecia diante da perda dos outros. Cem mil mortos. Cem mil em números oficiais. Muito mais que cem mil. Muita gente pensando no plano econômico que nos recuperará e tanto silêncio sobre esse imenso e dolorido trauma coletivo. Nós, brasileiros, povo brasileiro, somos péssimos em curativos. Escondemos as feridas em sorrisos e glitter e ufanismo e comida de boteco e passinhos e gritos de truco e religiosidade e sexualidade e bairrismo. A ferida é bem velha e o que vemos agora, em meio à pandemia, é o resultado do nosso jeitinho de dizer que vai tudo ficar bem. Pensar. Há quem seja ruim em pensar e há quem seja ruim com quem pensa. Nós somos os dois. Por mais que a gente, povo brasileiro, pense é o impulso que comanda. A saudade do café com pão de queijo torna possível tirar a máscara e tomar café rançoso como se fosse apenas mais um dia.
O problema é que é, né? Normalizamos as mortes, nos embrutecemos. Não vai acontecer comigo e até penso em tirar essa frase por medo de acontecer e ter que lidar com o julgamento público. A vergonha é um sentimento poderoso, subestimado. Já tem um tempo que abri essa página e comecei uma boa quantidade de textos por não saber ao certo o que queria conversar. Minha coluna dói. De novo e de novo. Sinto uma mistura gigante de emoções desde que entreguei o livro. Tenho coisas a falar sobre ele, mas não queria falar num dia em que fui ao mercado e sinto que falhei por não ter comprado flores. Mrs. Dalloway sobreviveu à gripe espanhola e saiu para comprar flores enquanto se recuperava. Quase ninguém pensa nisso, na força que uma mulher precisa ter para sair de casa e comprar flores quando tudo se desfaz.
Hoje quando fui ao mercado e escolhi tangerinas pensei no quanto eu precisava daquela cor. Viva. Sair de casa para o ordinário, o simples, a sobrevivência. Sair de casa sem medo de desrespeitar que perdeu tanto ou poder ser feliz nesses tempo. Esse sentimento lembra muito quando ouvi música pela primeira vez depois da morte da minha mãe. Ontem eu chorei ao ouvir David Bowie no final de um filme. Sempre choro porque ele me leva no lugar onde tem essa criança que o vê pela primeira vez e entende, acessa e abraça o diferente de si. Eu me lembro. Quando tudo isso acabar, quando for possível tocar as tangerinas sem medo, quero comprar minhas flores e dançar Bowie como se algo em mim fosse, de fato, infinito.

Ah, escrevo e mando. Sem revisão. Respeito os erros e os atos falhos para que essa conversa seja o mais natural possível. Se é que isso é possível.
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