Daqui um mês farei 45 anos e sigo a mesma que, na primeira série, aprendeu o que era mal estar no mundo diante de uma correção ríspida da professora na aula de português. Há uns dias que questionava o que tinha feito da vida em 2023 diante da frustração de saber que, por questões burocráticas, eu não poderia passar esse dia no bairro. Agora juntou o impedimento financeiro. Talvez seja essa a única viagem que quero fazer sozinha (e é claro que sinto culpa ao pensar nisso, pois). Exatamente como estava naqueles dias de luto em que encontrei as meninas e me permiti reviver através e atravessada (perdão) por elas as dores do luto em elaboração. Em 2023 mudei do bairro onde cresci, fugi, voltei e adoeci; cortei laços de forma definitiva; saí de ciclos tóxicos, coloquei um prática o sonho, mudei de país e comecei o doutorado na instituição que escolhi. De alguma forma, parecia pouco. Muito pouco. Hoje o dia amanheceu como um começo de noite e o frio está um pouco mais frio que o normal. Também chove muito. Acendi aluz da sala pouco antes do meio-dia. Me preocupo com a conta de luz, mas não a apago.
A gente (eu no caso) sempre lê sobre o que as pessoas fizeram para conseguir o que desejam. Sei que alguma coisa já mudou com essas semanas de aula porque me questiono se é aqui que faço o recorte de gênero, raça e classe. Ouvi isso de uma mulher branca e rica, dessas paulistanas que se tornam famosas por associarem competência com magreza e dinheiro de família. Não sou capaz de dizer qual desses atributos veio antes e significou mais. Ontem, antes de dormir e sonhar com uma festa cheia de pessoas famosas e o Jimin, estava pensando como deve ser a vida de uma mulher magra e que vou passar por essa vida sem essa experiência. Essa não é uma conversa sobre emagrecimento ou gordofobia.
Na segunda, cheguei na faculdade e vi uma barraca com livros. Tão rápido quanto me aproximei, me irritei com as pessoas que chegaram antes e estavam ali na minha frente. Eram livros novos e antigos e, por alguma razão, pensei se eram de graça. Sim. Contei essa história duas vezes pras minhas colegas de sala e rimos muito. É óbvio que estavam à venda, por um preço menor, mas à venda. Antes de perceber isso eu já estava com quatro exemplares no braço. Devolvi todos. Tenho outras prioridades, necessidades e acesso às bibliotecas e centros de documentação da universidade. Não fui eu que separei aqueles livros. Considero que um dos eventos canônicos da minha vida tenha sido vivenciar uma ação de empréstimos de livros infantis. Domingo. Estava em casa quando minhas vizinhas me chamaram e perguntaram se eu queria ir na praça brincar. No chão do coreto, livros. Escolhi um porque era o permitido. Lembro de, pela primeira vez, falar meu endereço em voz alta. O depois importa. Me dói pensar que, naquela vida de cuidados, tudo o que minha mãe viu foi (e era) o trabalho extra de administrar a devolução daquele corpo estranho. Para me castigar, ela escondia o livro no guarda-roupa. Para me aliviar, eu o lia de pé, no quarto escuro. Nunca a confrontei, nunca o peguei de volta, nunca o escondi em outro lugar. O dia em que o vieram buscar, a mesma pessoa que anotou o endereço onde estava agora, foi a primeira vez que vi aquela menina escondida atrás do muro aprendendo que algumas muitas coisas não eram pra ela. Vejo nela a tristeza e a constatação que me acompanharia naquela segunda: aquele livro não era meu, tinha preço e é caro. Essa não é uma conversa sobre dinheiro.
Morar em outro país é habitar outro mundo. Não quero falar sobre isso agora e caso você tenha alguma dica, opinião ou sugestão sobre isso, sobre como lidar com isso, sobre como viver esse momento, não me conte. Não me interessa. Já me desapontei demais. Outro dia li uma coisa no Twitter (sempre foi, sempre será) que me fez pensar muito nas coisas que me foram ditas. Não lembro exatamente o texto e nem quero trazer pra cá porque era sobre uma treta muito específica mas, em essência, é que não se pode exigir/impor limites quando você se expõe. Tem uma cena, nos primeiros minutos do primeiro episódio da primeira temporada de Amiga Genial (HBO+), que as meninas estão no centro do bairro e nas janelas dos apartamentos as mães e mulheres falam sobre uma mulher do bairro. A câmera acompanha as mulheres e nos mostra o assombramento das meninas. Existe uma tranquilidade na complexidade dos outros que nos cega diante do fato de que nós podemos ser o outro. Essa não é uma conversa sobre você.
É difícil digitar usando luvas. Meus pés estão gelados com um frio que atravessa a pantufa, a meia, o concreto. Dizem que no inverno é pior. É o começo do outono apenas. Tenho feito de planos de sair todos os dias. Ir às bibliotecas, da faculdade ou da cidade, procurar por uma mesa num café quente, caminhar mesmo que sob o frio e a chuva fina. Sair desse apartamento que é tão 2016, ano em que tudo era novo, ausente e duvidoso. Tem muita coisa desorganizada que preciso arrumar. Isso me faz recordar a ocasião do meu aniversário e da impossibilidade de atravessar o túnel e gritar pra ouvir minha voz. Acho que é nesse momento que a Ferrante escreve sobre o prazer de ser livre e a falta de responsabilidade. Aqui tem cinza no azul do céu. O frio é molhado e a chuva gelada. Essa pode ser a penúltima ou última carta de 2023. Depois daquele dia eu costumava fugir da sala de aula e deitar no chão da biblioteca da escola. Dia desses eu pude fazer isso e uma colega fotografou. Do chão, eu pude ver a pintura do teto. Cada mulher representa uma forma de conhecimento e, nas imagens pintadas em perspectiva, é possível notar coisas simples e complexas. Como a vida adulta. Um mar aberto e revolto e escuro de simplicidade e complexão. É uma foto muito bonita. Essa não é uma conversa sobre depressão.