Três ou quatro dias antes da mudança, recebi um e-mail informando que as aulas do doutorado começariam apenas no final de setembro. Eu estava na minha então casa, ao lado dos livros ainda não vendidos e com a xícara cheia do café que gosto e sinto falta. Aquilo me fez entender que entre minha chegada e o início das aulas, eu teria quase um mês (29 dias) para organizar a vida e me adaptar.
A última vez que tive um pensamento tão equivocado foi quanto em, 2007, comprei toda a série Harry Potter. O plano era ler durante a licença maternidade porque, afinal de contas, o que eu ia fazer sozinha, por quatro meses, com uma recém-nascida em casa? Não sei se tem uma palavra para o que tenho sentido, mas tenho pensado muito em escombros. Essa carta existe apenas para contar como cheguei nessa palavra.
Existe um prólogo. Nesse prólogo existe uma doutoranda e sua família e todo acolhimento do mundo. Não cheguei aqui sozinha. Não estou aqui sozinha. Mas cheguei aqui sozinha. Mas estou aqui sozinha. É aí, nesse lugar, que mora o sentido.
Num desses dias, precisei comprar coisas pro apartamento. Lençóis. Coisas que tenho na minha casa, na então casa. Mas na casa do agora, não tinha. Fui até o mercado e, entre ele e minha casa existe uma livraria. Livrarias são valorizadas aqui e pensei mil vezes como escrever isso sem soar arrogante ou coisa do tipo. Mas entendam, morei em cidades (de diferentes estados) sem livraria. Uma dessas cidades, inclusive, é conhecida por ser uma cidade universitária. Várias universidades, nenhuma livraria.
Bem, até o momento eu havia ignorado aquela livraria. Mas nesse dia, o sol estava alto e forte e quente. Eu já havia andado e muito resolvendo coisas da casa. Precisávamos dormir e eu tinha que devolver os lençóis emprestados. Nós, imigrantes, temos as coisas contadas. E contamos uns com os outros. Mas a realidade é que as coisas são contadas. Então, resolva-se. Fui resolver os lençóis. Comecei a passar mal. Achei que ia desmaiar como naquele dia em que desmaiei na casa da pandemia. Outra vida.
Sentei numa mureta e esperei o suor frio evaporar. Tinha tomado café com leite e só, horas antes. Já estava andando há muito. Era o segundo (ou terceiro) mercado do dia. Se eu pudesse dizer algo pra mim, naqueles dias em que procurava casa, é que a expressão “casa mobiliada” precisa ser investigada. Havia um vazio a ser preenchido por panelas, copos, pratos, talheres, cumbucas, panos de prato. Lençóis, foi isso que não encontrei. Lençóis. Entre eles e minha cama, havia só mal estar.
Fui me refugiar na livraria. De rua. Daquelas chiques. Mesas pretas, guarda sóis brancos, ar condicionado, bossa nova, café expresso, doces finos, pessoas com roupas de linho, tecidos esvoaçantes. Todos de branco, nude ou azul. E eles, os homens que escrevem.
O primeiro, jovem. Camisa social rosa com a manga dobrada, óculos escuros, caneta de marca, bermuda branca. Estava do lado de fora, olhando. No dia, uma parte minha pensou “que caralhos ele vê” e outra parte, narcisista e cruel, que pensa enquanto digito como ele descreveria aquela mulher gorda com cabelos curtos e brancos, roupa desalinhada e leve tremedeira que está prestes a desmaiar de realidade.
Lá dentro, outros. O grisalho de camiseta branca, o quase idoso com camiseta polo escura, o jovem com a camiseta engraçadinha se anunciando uma obra de um diretor homem. Homens. Todos de jeans, todos sozinhos, todos com café, todos escrevendo. Computadores cinzas ou cadernos pretos. Caros. Avistei um banco comprido entre as prateleiras. Branco, liso e brilhante. Parecia frágil. Calculei se ele suportaria meu peso. Era alvenaria. Fiquei ali. Recobrando sentidos. Se desmaiasse, meu corpo cairia na frente dos autores de língua portuguesa. Não caí e pude reparar o de sempre: poucas autoras. Quase nenhuma. Do meu mal estar, via o escrever dos homens indo e vindo. O escrever de homem é diferente.
Eles não pensam nos lençóis ou na matrícula dos filhos. Na ausência de vagas e em como nos jogam de lugar a outro sem nos olhar nos olhos para dizer não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Setenta vezes setenta e sete nãos. Ocuparia muito espaço para dizer todos os nãos que ouvi. Não pesa sobre eles a falta de espaço na estante, o preço dos cadernos caros ou a dificuldade de encontrar roupas claras de tecido leve e natural. Talvez isso também não pese sobre outras mulheres, mas pesa pra mulheres como eu. Mas eles estavam lá, nas mesas, nas estantes e nas lombadas.
Pouco a pouco, melhorei. Consegui andar, olhar outras estantes, sentar em outros bancos. Ainda hoje me questiono porque não me dei um suco ou uma água. Estava ali, há alguns homens de distância. Não comprei livros tampouco. Ainda não me recuperei do luto dos meus. Foram-se todos. Cada qual tem uma nova vida, com sua nova pessoa. A minha nova vida é aqui. Nessa cidade cheia de livrarias e de homens que escrevem. Desde que cheguei, escrevi a trabalho. Textos por encomendas e um salve(-me) pra minha analista sobre esse mal estar.
Não sei quanto tempo fiquei naquela livraria. Sigo perdida no tempo. Tenho relógios com o tempo do Brasil e o tempo daqui. Estou nessa fissura. Se durmo, acordo em acordo com o corpo e vou atendendo às necessidades dele. Se acordo, atendo às necessidades da vida. Tudo muito rudimentar. Ao vir pra cá, pensei que começar de novo fosse algo mais de outra coisa que não disso. Uns dias depois, entrei numa lanchonete que vendia “pastéis brasileiros” e conheci uma brasileira que me disse que imigrar depois dos 40 (ela 46, eu a três meses de fazer 45) é outra coisa.
Desamparo, eu disse.
É, ela concordou.
Nem consegui contar que vim pra cá para estudar, para começar aos 45 o que muitas das minhas amigas terminaram na casa dos 30. Doutoranda ou PhD Student como me chamaram ontem. Outro recomeçar. Não pensei no que vim fazer quando estava ali na livraria. Pensei primeiro em não morrer, depois em me recuperar e então em sair para buscar os lençóis. Enquanto pensava nos homens e na sua cabeça vazia de matrículas e lençóis, vi um livro da Elena Ferrante. Escombros. Peguei como se fosse uma porta no mar aberto. Demorei a entender que Escombros é a tradução portuguesa de Frantumaglia. Esse livro é sobre o escrever, a escolha da escrita e como ela nos afeta. A escolha da tradutora Margarida Periquito foi um assombramento.
Outra coisa que me questiono é porque, naquele dia, escolhi a palavra desamparo e não escombro. Pensando rápido, entendo que o desamparo é sobre o estar aqui e o escombro é sobre o escrever das mulheres. Ou é uma denúncia de como entendo a minha escrita e de outras mulheres. Não escrevo de uma das mesas da livraria.
Escrevo da sala do meu apartamento alugado e sem reforma que tem janelas mínimas e dois sótãos. Dois. É daqui que aperto o F5 para verificar se chegou a documentação, que atendo de forma ansiosa cada ligação (pouquíssimas) pensando ser da escola, que ouço as obras do metrô que acontecem na frente do prédio, que respondo mensagens de pedidos de trabalho com medo de não mais recebê-las, que assisto filmes de terror já assistidos para ter algum conforto, que deixo o varal de chão permanentemente aberto para que as toalhas não fiquem úmidas e fedidas.
Ontem apresentei os documentos físicos na faculdade e, sem nenhuma pendência (ao menos por agora), senti que enfim estudo ali. Ontem foi um dia de vitórias burocráticas que podem resultar em outras pequenas vitórias. As pessoas me perguntam me estou feliz. Julgo que nunca poderei responder isso.
Quando olho para o lado bom da vida é sempre pelo filtro de Monty Python. Não tenho muita tolerância para discursos do tipo e acredito que tem aí uma questão de gênero muito forte. E quando falo de gênero, estou falando dessa imposição de que toda mulher deve ser Easy, Breezy, Beautiful, Cover Girl.
Se me perguntam se estou feliz, digo que estou me adaptando. É uma mentira mais próxima da realidade, do escombro.
Ontem, ao fim de muitas questões burocráticas, sentei-me em frente à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e ouvi o silêncio dentro da minha cabeça. Pela primeira vez, em muito tempo, havia ali um silêncio. De novo, não sei quanto tempo fiquei ali. Tomei um gole de água e resolvi voltar para casa andando. Outro dia conto sobre como foi atravessar a ponte sozinha e o medo avassalador que senti. Por enquanto, me basta contar que atravessei o parque descalça, segurando meus tênis sujos e surrados na mão. Enquanto isso, a vida segue com tudo o que há de mais ordinário. Ir ao mercado buscar pão e água, ir em busca da conta de energia, pagar a internet que se mostra tão instável quanto eu ou descobrir como já posso ter faltas registradas se as aulas ainda não começaram.
No caminho do pão e da água, está a livraria.
Sobre o futuro da newsletter, essa no caso. Continua, só tenho pensado em como manter a periodicidade e quais assuntos abordar. Por enquanto, estou só a Luciana Gimenez e ainda há muito (muito mesmo) a ser feito. Tenho compartilhado muitas coisas nos stories do Instagram (@fabrina.martinez) e quase algumas coisas no Twitter (@fabrina). Que conste nos autos que durante a realização desse texto, o e-mail da documentação ainda não chegou e nenhuma ligação foi recebida.