Sabendo que és minha (ProAC | Jandaíra) é meu primeiro livro publicado e foi desejado, planejado e escrito sob o luto intenso da morte da Minha Mãe e da pandemia da Covid-19 e ontem, 23 de março de 2025, foi a primeira vez que o li desde a publicação em 2020. Claro que li, reli, apaguei, reescrevi, li e reli num processo que parecia infinito quando ele era apenas um arquivo no meu computador antigo mas desde que ele saiu da gráfica e desenhou sua própria existência, foi a primeira vez. É justo pontuar que li no Kindle, não o livro físico, e usei como desculpa a curiosidade em saber quais os trechos mais marcados pelas pessoas. São eles:
Hoje sei o que queria ter dito ou como gostaria de ter tido força ou coragem para simplesmente levantar e abraçar-la, em silêncio. Ou dizer que em mim ela nunca morre, mesmo que morra todo dia de manhã. Mas essa consciência só existe porque ela morreu. Ainda não sei como me sinto. (pg. 15 no ebook)
Li o trabalho de anos em poucas horas, fugiram algumas lágrimas que sequei antes de serem percebidas pelas turistas que estavam por ali e encerrei aquele texto com a certeza que 1) reeditaria aquele livro, 2) parece outra vida e 3) Minha Mãe Morreu mas segue viva em mim. Comentei com minha amiga (sempre ela) Michelle Henriques e ela respondeu com uma precisão desconcertante disse sim, parecia outra vida, porque “depois de muitos anos, uma pandemia e uma mudança de país” é, de fato, outra vida. Em 21 de mayo de 1980, Gloria Anzaldúa escreveu Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo e que li, pela primeira vez, depois de começar o doutorado em Estudos Feministas e na condição de imigrante. Ainda me faltam palavras para lidar sobre essa condição. A escritora Maria Fernanda Ampuero fala sobre o livro Sacrifícios Humanos (Editora Moinhos) e conta que
“Biografía” tiene mucho que ver conmigo y con mi vida, con mi desesperación. Hay una frase en ese cuento terrible que para mí resume esa sensación que yo tenía todo el tiempo. Y es cuando la protagonista se sienta a tomar un café en una terraza y dice: “Soy una persona normal”.
é isto. Ainda não consigo pensar numa forma mais precisa de dizer o quão massacrante é a condição de imigrante, ao menos da forma como estou vivendo. Outro dia, Fifis me disse que uma professora perguntou aos alunos brasileiros se eles gostavam de Portugal e Fifis respondeu que não, que gosta das oportunidades que tem aqui mas que gostaria de ter essas oportunidades no conforto do Brasil. É muito bom, sem ironias, ser brasileira. É muito ruim, sem ironias, ser brasileira. E esse é um assunto que precisa de muito tempo, chão e palavras para ser tratado de forma apropriada, justa, correta. Nada é muito simples e seria irresponsável dizer apenas isso, mas é o que vou fazer. Um exemplo muito prático e pessoal é o álbum do rapper porto-riquenho Benito Antonio Martinez Ocasio, o Bad Bunny, DeBÍ TiRAR MáS FOToS2025 que tem essa capa sensacional:
Sensacional é palavra certa, em sua raiz. Mas não é simples. Desde que esse álbum foi lançado, ele está no meu fone. É essa música que ouço quando estou enfrentando os morros ou as escadas de Coimbra, quase sempre debaixo de frio e chuva e temperaturas abaixo dos 10 graus, e quase sempre estou pensando na Minha Avó, na Minha Tia e na Minha Mãe, nas fotos que não tiramos e nas coisas que vivo aqui e não posso falar com elas ou como não posso simplesmente chorar no colo delas dizendo que eu quero voltar pra casa mesmo sabendo que a morte delas encerrou qualquer possibilidade de casa. Muito foi falado sobre a escolha dessas cadeiras e de como esse modelo representa o que é ser da América Latina (e hoje eu consigo me enxergar nessa posição, ironicamente) mas, enquanto mulher gorda, essas cadeiras tem outro significado. Agora, quando esse álbum toca, penso em mim e na protagonista de Infinita (Autêntica Editora), livro escrito por Camila Maccari e que narra a história de uma mulher gorda que precisa lidar com tudo o que acontece depois que a cadeira aonde ela está sentada, num bar cheio, quebra. A leitura, que ainda está acontecendo, desbloqueou essa lembrança traumática da cadeira que quebrou logo após receber meu corpo. Exatamente a mesma cadeira da capa do álbum que ouço todos os dias e que me trazia algum conforto. Não há mais o conforto. Ler esse livro tem me feito pensar naquele momento em Riobaldo diz que se não se importa que alguém falou mal dele, mas que não contem. Se a cadeira quebrou, não me lembrem. Se há roupas que não me servem, não me falem. Se a vida de imigrante é insalubre, não me contem.
Muitas pessoas que fui morreram. Ontem, quando li Sabendo que és minha pela primeira vez desde sua publicação foi para me despedir daquele pessoa que fui ao escrever, para abrir espaço para essa pessoa que escreve isto aqui, o projeto de tese, futuramente (oremos!) a tese e, quem sabe, um novo livro. Talvez seja mais simples e eu esteja apenas registrando a pessoa que fui, elaborando o luto pela pessoa que morreu quando imigrei, quando entrei no doutorado e que existiu antes de Anzaldúa. Isso é o que faço: leio e escrevo sobre vida, morte e luto pela perspectiva de mães e filhas. Escrever para viver bem e morrer bem. talvez seja o caminho. Veremos.