Em Angústia, Graciliano Ramos, escreveu que
nunca presto atenção nas coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso, como sou besta!
e a gente sabe como funcionam esses trechos fora do contexto. Dizem algo sobre o autor, sobre a obra e muito sobre quem o seleciona. Não li Angústia. Minha memória afetiva com Graciliano é com São Bernardo que, durante meu mestrado, me ensinou algumas muitas coisas sobre silêncio. Gosto dos nomes que ele dá aos livros. Angústia. Insônia. Infància. Existem outros, eu sei que você sabe e você sabe que eu sei. Mas aqui, na quarta-feira de cinzas de 2023, vamos falar de angústia, insônia e infância.
Foi num carnaval, na década de 1980, que eu e outras amigas andamos umas boas quadras até chegar numa praça onde pessoas de alguma biblioteca, provavelmente a municipal, promoviam uma exposição itinerante. Como sempre, fui porque me levaram. Essa é uma característica muito forte da minha existência. Fui porque me levaram. Eu sou levada aos livros.
Foi assim nesse dia, foi assim no mestrado, foi assim no Leia Mulheres Marília mas não foi assim no doutorado. Lembro de caminhar em direção à praça alheia à preocupação da minha mãe. Precisei ser mãe para entender que pra seguir vivendo, a gente - a mãe -, precisa abafar essa voz que ordena “esteja ao lado da sua cria o tempo todo em todo lugar”. A angústia da mãe é uma coisa que está na palavra angústia enquanto segue apartada dela.
Minha mãe tinha quatro filhos e um marido. Todos dependentes dela em maior ou menor grau. Não tinha mãe pra todo mundo e eu fui a primeira a aprender sobre a rua, sobre as praças e a casa dos outros. A minha mãe foi muito diferente da mãe dos meus irmãos, que cresceram com mãe e pai. E falar dessa mãe é muito solitário, é quase como ser filha única. Tem um período em que éramos ela e eu e depois todos os outros e minhas mudanças geográficas. E tem a casa. Esse universo.
A primeira lembrança que tenho de um caminhão de mudança foi aos quatro anos. Num dia eu tinha avó, avô, tias e tios, prima e primos na vila Sobrinho em Campo Grande (MS) e no outro eu só tinha uma cama pequena numa casa pequena de uma casa de vila espremida entre o prédio da Circular de Marília (MS) e outra casa que tinha jardim. Depois disso, a casa continuou a mesma mas minha mãe foi tendo filhos e meus irmãos precisavam de espaço. Antes de sairmos pra outra vida, que moldou a memória dos meus irmãos, nós ficamos naquela casa, que moldou minhas memórias.
As pessoas colocaram os livros no chão do coreto e a gente podia olhar, tocar, folhear. Emprestar. Lembro de perguntar para dois adultos diferentes se eu realmente podia levar aquele livro. Cresci numa casa sem livros, quase sem papel e sem palavras. Os jornais entravam como embalagens de carne ou esperança de novos empregos ou salários. Talvez seja por isso que, mais ou menos em 2005, ao entrar num táxi recém lavado eu tenha sorrido largada ao ver que entre o piso do carro e meu tênis, estava o jornal com a matéria que escrevi, meu nome. Eu estava ali antes de estar lá. Levei o livro pra casa e tenho apenas duas lembranças dele.
A primeira é que ele tinha uma quantidade absurda de rosa e a segunda foi a raiva que minha mãe sentiu porque ela, em algum momento, teria que parar a vida para devolver aquele livro. Ela nunca devolveu, foram buscar. Lembro de olhar pela porta da cozinha o rapaz esperando na frente do muro baixo, o sol forte e a raiva no olhar da minha mãe pela vergonha de ser cobrada. Entre o empréstimo e a devolução, ela escondia o livro pela casa. Um castigo, acho. Quando ela ia cuidar de algum dos outros dependentes, eu abria as portas escuras do guarda-roupa de madeira e procurava pelo livro. Ele ficava entre panos de prato, toalhas de mesa e decorações de crochê. Pegava ansiosa, lia apressada, devolvia angustiada e então ficava na sala, pensando.
Depois. Veio a escola e, então, a biblioteca. Veio a primeira mudança sozinha pra casa da minha avó e, então, os clássicos do meu tio e os livros espíritas da minha tia.
Escrevi uma coisa no Twitter sobre carregar essa tristeza ancestral.
Tem um tempo que resolvi voltar a estudar e fazer doutorado. Entre a graduação e meu mestrado, houve um intervalo de trabalho e maternidade de 10 anos. Entre o mestrado e o doutorado (caso eu consiga entrar, oremos) vai existir um intervalo de trabalho e maternidade de 10 anos. Acho que 10 anos é meu período de maturação. É muito óbvio dizer que aquela pessoa que saiu do mestrado - ferida e cansada - não tinha condições de fazer o que posso fazer hoje, principalmente num doutorado. Tanta coisa aconteceu, tem tanto eu perdido e achado nesse tempo e nesse espaço. Mas, de alguma forma muito obscura, eu me sinto abrindo aquele guarda-roupa e procurando por um diploma, por um livro, por uma autorização de existir junto aos meus sonhos.
“Nascemos e mantemos nossa existência no lugar da memória. Traçamos nossa vida por meio de tudo o que lembramos, do momento mais mundano ao mais majestoso. Conhecemos a nós mesmos por meio da arte e do ato de recordar. As memórias nos oferecem um mundo onde não há morte, onde somos sustentados pelos rituais de afeto e lembrança.”, Bell Hooks que nos deixou em dezembro de 2021 depois de nos dar tanto. Obrigada por todo amor, Bell.
Talvez eu esteja chorando um pouco mais forte do que chorei no mercado, quando diante das inúmeras coisas que não posso comer só pensava em conversar com a minha mãe mesmo sabendo que ela me olharia daquele jeito e diria que todos esses livros estão me enlouquecendo. De fato, estão. Os meus livros são um pouco mais que meu trabalho. Em Tudo sobre amor - novas perspecticas, a Bell Hooks diz que
E, por mais que eu tentasse, não conseguia consertar as coisas. Nenhuma outra relação curou a dor daquele primeiro abandono, daquele primeiro banimento do paraíso do amor.
Com toda intimidade que só uma leitora de Paulo Freire é capaz, ela ainda conta que
Durante anos vivi uma vida suspensa, presa ao passado, incapaz de seguir em direção ao futuro. Como qualquer criança ferida, só queria voltar no tempo e estar naquele paraíso outra vez, naquele momento de arrebatamento do qual me lembrava, em que me senti amada, em que senti pertencimento.
Isso acontece no prefácio. Tudo o que vem depois é de um desgraçamento lindo. Acho que vou fazer uma pausa para chorar. De leve.
Terminei o trecho acima e fui pra terapia. Existe um choro que não saí e que não me deixa falar. A leitura de Bell Hooks me fez pensar no que fiz do que fizeram com a criança que fui. Gosto demais da forma como o livro é estruturado porque ele conversa com a vida e não com a expectativa. Num determinado ponto, ela diz que
não há amigo ou amante, esposo ou esposa, comunidade ou comuna capaz de amainar nossos desejos mais profundos por unidade e integridade.
Isso me fez perguntar se “você sabe ficar bem contigo?” porque talvez essa seja A questão entre tantas outras. Tem uma coisa que sempre falo na terapia é que só me vejo sob determinados adjetivos porque as pessoas usam de forma recorrente comigo.
Relendo Tudo sobre o amor da Bell Hooks para o Leia Mulheres Marília e essa pergunta fica quicando na minha cabeça. Quando ela diz que “não há amigo ou amante, esposo ou esposa, comunidade ou comuna capaz de amainar nossos desejos mais profundos por unidade e integridade” ela me lembra as sessões de análise em que falávamos sobre como ser um bom ímpar é essencial para ser um bom par. O livro tem me colocado diante da infância, das amizades e dos relacionamentos que me foram apresentadas como amor e cuidado e afeto. Ocupou minha mente com o agora e com o porvir. Também me fez pensar naquele episódio de Black Mirror em que a mãe coloca um controle na filha por amor ou o que ela entendia de amor. Enfim. A gente não fala de amor né? e quando fala é de forma superficial, pra encerrar assunto, pra ter um fechamento bonitinho. A Bell Hooks coloca, já no começo, que amar é escolha. Mas como uma mulher escolhe? Pensando no social mesmo, diante de tudo que nos é privado, como uma mulher escolhe? Quando saber a diferença entre abandono e entrega se o que te foi apresentado é turvo? Transformar solidão em acolhimento me parece (hj e sempre) um bom caminho, me faz pensar na vó e seus silêncios e crochês. Em como ela, que mesmo antes das limitações da velhice, tinha uma vida restrita às poucas palavras e linhas. Procurar refúgio nas mulheres da família sempre me pareceu o caminho mais próspero para me entender e entender o sentir. Amar o outro precisa ser escolha, amar a gente precisa ser base, compromisso pra além das frases feitas. Parece fácil igual crochê. Mas nunca é.
Esse carta é uma grande questão que compartilho com vocês. Eu tenho tentado fazer as coisas da melhor maneira possível: tomando meus remédios, me alimentando bem, bebendo água e parando pra respirar sempre que o grave da Galopeira se torna o índice da ansiedade. Bell Hooks diz que “quanto mais nos aceitamos, mais estamos preparados para assumir responsabilidade em todas as áreas da nossa vida”, e aceitar passa pela ação, pela capacidade de assumir responsabilidade até pelo que sentimos. Ontem conversando com minha companheira, eu disse que uma escolha dela me magoou. A escolha foi dela e eu me magoei porque esperava algo diferente porque eu faria algo diferente. Parece simples, mas levei meses pra me organizar e dizer essa frase. Sem contar que tem todo lance de responsabilidade afetiva e autorresponsabilidade, mas isso é outra coisa. É do outro. Esse debate é uma grande blusa de crochê. Um nó que junto com outro nó até virar uma roupa que não é bonita, que dá coceira e aperta. Não é simples, nunca é. Por isso, vou encerrar esse mês com uma fala da Bell Hooks que conversa muito com esse crochê.
Assumir a responsabilidade significa que, diante de barreiras, ainda temos a capacidade de inventar nossa vida, de moldar nosso destino de formas que ampliem nosso bem-estar ao máximo. Todos os dias praticamos essa transmutação para lidar com realidades que não podemos mudar facilmente.
Sinto que essa conversa é uma daquelas que terminam em silêncio e com um gole daquilo que a gente está tomando pra ajudar a descer. Tem uma coisa de organização interna que estou vivendo que tem se refletido na minha mesa, na casa, nas minhas redes e no meu jeito de escrever e encarar a escrita. Patti Smith me abraçou bastante quando disse que ela é uma escritora que fala sobre escrever enquanto não escreve. Tenho escrito mas de outros jeitos e outras formas e nos cadernos de capa preta que estão na minha mesa, na cabeceira ou bolsa.
Essa coisa de amar, ser amado e se dar o que a gente merece é muito difícil. Ser feliz com quem somos é muito difícil, imagina ser feliz com quem somos nos nossos próprios termos. Haja coragem. A ideia é que esse e-mail chegue sempre às 10h da manhã e agora são 10h13 e estou digitando essas linhas. Sinto que tem algumas outras coisas que queria colocar nessa conversa mas, talvez e provavelmente é, a necessidade de te ouvir sobre esse processo. Ouvir o outro é uma das coisas mais ricas que podemos nos dar e é impressionante como temos tirado isso da gente.
Volto mês que vem com o textão, mas podemos conversar por aqui ou no Twitter (onde estou sempre) e no Instagram (quase nunca porque sou bem ansiosa). O site ainda está em fase de ajuste porque depende exclusivamente de mim e para ser boa comigo tenho equibilibrado pratos de forma que meus braços e pernas e consciência doam menos. Também tenho pensado em colocar aqui os links das coisas que me afetaram, então a coisa mais coerente a fazer é dizer leia Tudo sobre o amor da Bell Hooks, que fala sobre amor nesse vídeo aqui. Sigo tendo insônia.
Muito obrigada pela companhia e até logo.
Fabrina
sentindo muitos sentimentos por aqui ao ler sua carta. também tenho pensado muito no quanto de responsabilidade minha tem no que tenho feito com a minha vida e no quanto ainda sou levada pelo outro aos lugares e decisões que ocupo hoje. enfim, falou muito com várias partes do meu próprio processo. obrigada por compartilhar ❤️
Que lindeza de texto! Me abraçou! Muito obrigada! ♥️