Feridas, Ferrante e burnout em legítima defesa
Oi.
Não me atrevo a perguntar como você está, mas desejo que esteja bem e em segurança.
Resolvi escrever depois de reler uma entrevista da Ferrante em que ela diz que "escrever é como girar a faca na ferida". Tenho algumas feridas visíveis na perna, mas as piores estão no rosto quase sempre cobertas pela máscara ou pela pomada. Elas não melhoram. Quando estão quase cicatrizando preciso sair de casa e novamente uso máscara (PFF2) e elas voltam. Só que a Ferrante fala de outras feridas, outras coisas. Também quero falar dessas coisas. Das feridas que sangram mas a gente não vê. Só sente.
Nos últimos dois meses muitas coisas aconteceram e fui lidando com elas uma a uma. Tinha escrito a palavra ruim ao lado de coisas, mas apaguei num rompante de desespero. Não é otimismo, só não quis classificar mesmo. Dois meses sem escrever quase nada, só lambendo minhas feridas. Sozinha em casa. Entre as piores coisas nesse período, está o meu café. Todo dia ele piora um pouco e hoje se tornou insuportável. O pó é o mesmo, a medida é a mesma, a água é a mesma e o coador (de pano) é o mesmo. Mas eu não sou mais. E isso tem afetado negativamente meu primeiro contato com a realidade que é o café. Preto.
Há quase sete (seis? oito?) meses estou completamente só em casa, no isolamento. Nesse período, fiz três ou quatro testes de Covid-19. Da última vez foi depois de ter encontrado com meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho. Todos os três positivaram. Difícil viver os dias sabendo que parte da sua família está afetada, incluindo um bebê de pouco mais de um mês. Fiz o teste um ou dois dias de falar com a psiquiatra (por telefone). Ela me receitou um remédio novo para Transtorno de Ansiedade Generalizada, mas demorei pra pegar a receita porque pandemia e isolamento. Quando finalmente consegui, deixei todo meu dinheiro (que não era muito) na farmácia para pagar os remédios. Amanhã devo ir aos correios postar uns livros. Todos os três se recuperaram bem. No sentido mais básico de recuperação.
Os meus testes sempre deram negativo e entendi que não tive Covid. Tive um burnout que foi confirmado numa sessão com a Minha Analista. Nunca escrevi tanta nota de falecimento, obituário, nota de pêsames ou afins. Nunca. E olha que trabalhei anos em jornal diário, inclusive como editora de Polícia. Mas eu tive esse burnout e ainda estou em processo de recuperação. Um sinal de melhora é conseguir escrever essa cartinha. Teve esse dia em que eu não conseguia ler ou escrever ou parar de ranger ou apertar meus dentes. Já quebrei dois. As palavras estavam lá mas elas não diziam nada. Eram pequenas imagens, uma ao lado da outra, sem qualquer conexão ou significado. A mancha do texto era quase como um terremoto na pupila. E então, exerci meu papel de autônoma PJ freela e pedi 10 dias de folga.
Fiz uma série de planos para colocar as coisas em ordem. Coisas do livro, da casa, da vida. Não consegui. Num dos dias, peguei a televisão e levei pro quarto. Chamei Beroka e Betânia e fechei a porta e dormi o dia todo. Acordei com uma crise de ansiedade porque não estava fazendo nada e tudo estava parado e fora do lugar e atrasado e o café ruim. Veja, não acordei e tive uma crise. Tive uma crise enquanto dormia e acordei desesperada porque não consigo fazer nada. Exausta na raiz da palavra. Depois da Minha Analista dizer que tudo bem dormir, fui intercalando momentos de sono com coisas como tirar a ferrugem do pé da mesa; replantar os cactos (sejam inteligentes e usem luva. não usei) e assistir uma série ou filme. Li muito pouco porque não conseguia entender o que estava na linha acima e me desesperava (sim, a palavra é essa) com a possibilidade de ficar assim pra sempre. Estou melhor? Estou. Sabe o que fiz na última noite de sexta da minha folga? Escrevi um comunicado de falecimento de uma pessoa que morreu de covid, sem comorbidades. Essa pessoa é apenas dois anos mais velha que eu.
Nessa entrevista, a Ferrante diz que "não mudamos nossa forma para assumir outra que pareça mais verdadeira sem corrermos o risco de não nos encontrarmos mais". Esse trecho que recortei e estou usando completamente fora de contexto é muito como tenho me sentido. Desordenada. Um terremoto na pupila. Meu olho dá aquelas tremidas quando passo muito tempo na frente da tela e só percebi o quanto isso me incomoda quando depois de meses, deitei no divã e chorei dizendo (pra mim) que eu não sei o que fazer. Boa parte do meu trabalho consiste em resolver problemas antes que eles aconteçam e gerenciar o impacto deles depois de acontecerem. Eu sou a pessoa que resolve coisas. Não sei o que fazer. Não sei o que fazer quando acordo, quando percebo que o café de hoje está pior que o de ontem, quando sinto vontade de chorar porque qualquer coisa normal aconteceu, quando tento ligar pra dentista mas tenho medo de me expor tanto assim, quando ouço meu irmão falar sobre sua rotina na UTI de Covid (ele é enfermeiro) ou quando minha tia me manda áudio dizendo que na próxima semana vai tomar a segunda dose da vacina.
Não sei o que fazer porque a pandemia cortou meu processo de ser (ou assumir) uma forma que se pareça mais verdadeira comigo. Tenho noção do quanto isso é pequeno e raso diante de tudo que vem acontecendo. Sim, eu sei que é um baita white people problem. Nem sei como seguir adiante esse texto porque já me sinto completamente desgastada e ridícula por ter começado esse texto. Assino muitas newsletters que trazem informações reais e concretas e eu não sei o que fazer com isso aqui também. A verdade é que não sei o que fazer comigo, com as pessoas que amo, com o livro que escrevi, com minha casa, minhas cãs e meu café ruim. Como é que você vende um livro falando sobre a perda de um amor quando, em média, quatro mil pessoas perdem um amor por dia? Como a gente segue adiante sabendo que o Brasil já registra mais mortes que nascimentos?
Eu não sei.
Mas peguei a caneca da universidade que sonho estudar e tirei da decoração pro uso. Quando se gerencia uma crise é essencial oferecer uma expectativa de futuro concreto, realista. Nós não temos isso. O que a gente tem é o dia de hoje, o agora. Claro que sempre foi assim. Estoicismo eu te amo, mas a brutalidade desse momento está nos matando. De um jeito ou de outro. Quando questionada sobre escrever suas histórias em Napóles, Ferrante diz que "podemos escrever sobre qualquer lugar, o essencial é conhecê-lo a fundo, senão corremos o risco da superficialidade.". Desde julho de 2018, meu lugar de escrita é o luto. Talvez antes também fosse, mas não com fronteiras tão bem sinalizadas. Escrevo do centro do luto desde então. Escrevo apertando e rangendo e quebrando os dentes, sujando meu óculos com gotículas de lágrimas, com enjoos de fome e cansaço e com medo de perder mais gente. Acordo e enquanto tomo meu café ruim vou rolando a tela para confirmar que estão todos ali, escrevendo suas dores.
Ler um desabafo das minhas pessoas é algo que me faz bem porque eu sei que quando aquilo foi digitado havia uma parte dessa pessoa lutando por vida. No luto, silêncio é outra coisa. Talvez por isso eu tenha retomado as notificações sonoras do meu celular. A figurinha de bom dia, o gif, o desabafo, a piada sem graça ou o comentário sobre o BBB se tornaram sinais de vida. "Essa pessoa ainda vive" é uma frase que não digo em voz alta e escrevo pela primeira vez. No lugar do oi lá no começo, quero colocar "que bom te encontrar viva" na expectativa de, a qualquer momento, dizer em voz alta "que bom te encontrar".
Que bom te encontrar viva.
Escrevo e mando. Sem revisão. Respeito os erros e os atos falhos para que essa conversa seja o mais natural possível. Se é que isso é possível. Por onde estou:
Livro: Para comprar o Sabendo que és minha, você pode mandar e-mail para oi@fabrinamartinez.com

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