interlúdio | 1: prólogo
nenhum poder cá fora
oi, tudo bem consigo?
decidi ilustrar essa newsletter com um dos grandes momentos da história contemporânea brasileira: William Bonner catando cavaco e fingindo controle porém impecável de terno.
Fotos: reprodução internet
Há coisa de um ano, escrevi:
pisei no aeroporto de Lisboa em 25 de agosto de 2023. Em 06 de outubro, escrevi:
enquanto preparava a mudança do Brasil para Portugal, eu jogava esse jogo que permitia reiniciar sempre que a coisa não ia. paciência spider é um jogo simples, de gente solitária ou que não quer ou que não consegue conversar. era um período em que eu não conseguia. acho que foi ali que perdi minha habilidade de articular palavras. então sempre que a coisa não ia, eu reiniciava o jogo e não havia qualquer sinal de que tinha existido um antes. quando engravidei, uma mãe de três meninos (sendo ela rica, magra e loira — sim, isso importa) me disse que filho é uma folha em branco em que os pais escrevem conforme abre mil aspas criam fecha mil aspas. ao arrumar minhas malas e bolsa, precisei decidir o que faria com cadernos e bilhetes e agendas que tinham rascunhos de listas, listas, rascunhos de textos, quase textos e textos. quando decidi fazer o doutorado, mudar de país e recomeçar aos 44 tive que encarar cada nó solto da minha vida e aceitar que a única pessoa capaz de lidar com tudo aquilo, para minha tristeza, era eu. e eu não sei. honestamente, não sei.foi a última coisa que escrevi sobre esse momento, mas não tenho certeza. sei que enviei uma newsletter sobre algumas coisas, mas também não tenho certeza. O que sei é que escrevi — ao menos — os textos dos seis seminários do doutorado e todos eles carregam muito da imigração. mas, especificamente sobre minha condição de imigrante, não lembro de ter escrito nada. nem aqui, nem no celular, nem no caderno. nada. há umas semanas decidi que precisava escrever alguma coisa, qualquer coisa, e comprei um caderno vermelho pra me acompanhar. ele segue em branco. foi quando li a newsletter da
sobre como começar um projeto.
Nessa época decidi começar um projeto chamado |interlúdio|: textos semanais sobre meu primeiro ano como imigrante brasileira, nada de “como fazer a compra da semana com 10 euros” mas algo como “estudar em salas com mais de 700 anos de existência é lindo mas ao fim do dia você precisa de um relaxante muscular porque ergonomia é uma prioridade bem recente mas, como os documentos demoram a chegar, você segue como uma imigrante indocumentada sem acesso aos médicos e, consequentemente, a um relaxante muscular que realmente funciona”. O objetivo era, também, fazer da escrita um ato constante e consistente e, oxalá, fazer disso uma fonte de renda (ainda que rendinha). Nada aconteceu. A verdade é que eu não sabia o que sei hoje: imigração é violência.
Sobre a beleza do óbvio.
Créditos:
“Imigração é violência” não é frase minha. Foi algo dito pela pesquisadora e minha amiga Iuri Lopes, durante um dos últimos seminários do doutorado. Era isso que eu precisava saber sobre o |interlúdio|: ele não era sobre imigração, era sobre violência. Eu não sabia na época, mas agora eu sei.
O nome |interlúdio| veio de um episódio do podcast Respondendo em voz alta da
, esse aqui, em especial, quando ela fala sobre ser uma pessoa deprimida, não querer nada da vida (tipo sonhos) e sair fechando portas que se abrem. É um episódio de 2021 mas que ainda me pega como se fosse uma conversa de bar que acontece no agora agorinha, especialmente quando ela fala dos dias ruins em que ela acorda e pensa “porque que eu vou criar alguma coisa hoje? porque eu to me dando o trabalho? porque eu to fazendo isso?”. Agora bato o copo na mesa e grito SIM. Esse episódio me traz um conforto imenso.
O meu querer é fraquinho.
Mesma, Eu.
Falando em copo. Aqui não tem aqueles copos de boteco que servem café, água ou cerveja a depender do seu estado, disposição ou necessidade. Tem um modelo muito similar, de quem copiou mas não fez igual. O vidro é mais grosso, ele é mais pesado e o fundo não é reto, tem qualquer coisa de harmonização facial e lentes nos dentes. Uma sofisticação que apaga a identidade. Foi algo que me incomodou tanto que cheguei a cogitar usar isso como ponto de partida pra falar sobre a relação que o norte tem com a cultura do sul global e como o norte se impõe sobre nós. Não fiz.
(eu acho, não lembro ao certo). hoje acho tão simbólico que uma das frases mais célebres de Game of Thrones seja “The North Remembers” porque se tem uma coisa que aprendi estudando numa universidade européia é que, assim como a memória, o esquecimento é seletivo. O norte se lembra daquilo que convém ao norte.
Quando Laurinha Lero pergunta “Porque vou criar alguma coisa hoje?” penso de forma mais cínica ou cansada: Porque criar qualquer coisa? Quando criança, eu dizia | sabia que minha profissão envolveria uma mesa cheia de papéis e canetas. Na minha mudança pra Coimbra, trouxe duas malas de 23kg e uma delas era só de papel. Livros, cadernos, agenda e coisas que me abraçaram naquele primeiro ano de imensa dor. Imensa. Prestes a completar dois anos de imigração, posso dizer com tranquilidade que não me adaptei e ainda tenho alguma dúvida se me acostumei. Assim como um dia tive certeza que minha felicidade era uma mesa cheia de papéis e canetas, um dia tive a certeza de que seria mais feliz (comigo e com o mundo) se fizesse esse doutorado, nessa faculdade. Não aconteceu.
Quando olho para a pessoa que chegou nesse país em 2023 (tadinha) e a pessoa que digita essas linhas há uma distância tão grande. No primeiro texto que escrevi nessa newsletter, lá em 20216, eu citava uma frase da música The Zephyr Song do Red Hot Chilli Peppers que diz “I feel it more than ever” e, se eu pudesse ou tivesse alguma condição, ao menos agora, de começar a falar sobre esse processo de imigração, seria revendo o significado dessa frase. Prestes a completar dois anos da minha mudança, eu voltei pros antidepressivos e ansiolíticos. “voltei”, notem a escolha do verbo. A sensação é que nunca vou me recuperar fisicamente, emocionalmente e financeiramente desta mudança.
Li A Boba da corte da Tati Bernardi (Fósforo editora) e foi o primeiro que li dela. Parte importante da minha tese é pensar sobre a forma como as autoras se mantém presentes em seus textos ou, como gosto de resumir apesar dos protestos (corretos) de uma das minhas orientadoras, pensar sobre livros em que a pessoa que assina é a mesma que protagoniza a história. Estou passando com um rolo compressor por todas as camadas dessa questão porque esta não é a minha tese e nem este é o momento, segue o baile. Li A Boba da corte da Tati Bernardi assim que saiu e o que me decepcionou, enquanto leitora, é que não me sobrou nada pra imaginar. Qual o momento em que uma autora se torna tão autorreferente, em tantos lugares diferentes, a ponto de interferir no que suas leitoras imaginam enquanto a lêem? Essa pergunta não está na minha tese, mas poderia. É uma dúvida que, na verdade, me acompanha enquanto escrevo porque gosto de escrever em primeira pessoa e a partir de experiências vividas no corpo ou na imaginação. Pensar a escrita é um grande conto de atmosfera.
Entre as autoras que pesquiso, estão Annie Ernaux e Alison Bechdel. Há um terceiro nome que permanece em suspenso e que, embora já tenha mandado o projeto para registro, não sei se permanecerá no corpus. Mil questões, entre elas, quero muito uma autora brasileira mas não encontrei. A forma como o doutoramento acontece aqui é diferente da forma como acontece no Brasil, ao menos foi comigo. Primeiro deve-se cursar os seminários por um ano, conviver com as professoras e, só então, convidar alguém a te orientar. No ano seguinte, há um seminário e orientações para a construção do projeto de tese que, se aproxima de alguma forma, do relatório de qualificação no Brasil. Há a defesa e o envio do texto pro Conselho Científico e se aprovado, pode começar a fazer a tese. Defendi em julho e ainda estou esperando o Conselho Científico, que deve me responder (oremos) em setembro. Agosto é férias de verão. Beroka morreu no segundo dia de 2025 e não verá o mar daqui. Hoje a Betânia conheceu o Parque Verde e encontrou outros cães. Voltamos cedo. Recebemos um novo alerta de queimadas.
Foto: RTP
os remédios foram receitados pelo meu médico de família e comprados numa farmácia perto do teatro. antes disso, a médica da universidade redigiu uma carta pra ser apresentada na emergência hospitalar para eu conseguir atendimento imediato por conta do meu «sofrimento emocional». não tive coragem de ir. sou imigrante. uma amiga se dispôs a ir comigo. não aceitei. ela também é imigrante. rimos muito do meu medo de eu entrar andando com a carta na mão e sair apenas dez, quinze dias depois, ao fim de uma internação compulsória. é assim que lido com meus medos. o que importa é que já estou medicada mas ainda naquela fase inicial em que o efeito placebo é tudo que nos mantém de pé.
meus vínculos concretos com o Brasil estão cada vez mais escassos e isso tem me afetado muito. tenho poucos e bons vínculos aqui, construí coisas legais e estou construindo outras mas a sensação de não pertencimento é latente e real. nesses dois anos destravei meu inglês, meu francês deu um salto de melhoria ridículo, o portunhol está voando e meu italiano é bonitinho. o alemão continua no estado de desistência. aprendi coisas, muitas coisas. mas fiquei vazia. muito do que trouxe comigo ficou pelo caminho. ainda não reconheci meus diplomas aqui e isto faz de mim uma estudante | candidata ao título de doutora que, perante determinados órgãos do estado, não teve nenhum tipo de educação formal. o reconhecimento de um diploma brasileiro de graduação ou mestrado de determinados programas leva, em média, 90 dias úteis e custa entre 500 e 750 euros.
quando digo que meu querer é fraquinho estou pensando em tudo o que tenho que fazer pelo mínimo, aí ou aqui. É um jeito de dizer que desisti mas continuo tentando. A imagem ideal é daqueles concursos de beijo em que a pessoa só mantém o lábio grudado mas o resto do corpo já foi com deus. a internet (ou minha bolha ou o que o algoritmo me entrega) está cheia de gente falando sobre ser trânsfuga de classe ou capital cultural, por exemplo. queria acrescentar a palavra colonialismo nessa conversa mas tenho zero condições desse debate porque estou imersa na realidade que imigrar é violência e te expõe imenso a perdas e lutos. na primeira vez em que comentei com uma conhecida sobre como era estudar aqui, logos nos primeiros meses, a resposta foi algo do tipo “Brasil ame-o ou deixe-o e que bom que eu fiquei no Brasil e não fiz o que você fez”, está entre aspas mas não é literal. foi pior. sigo entalada (sou ruim igual meu pai, dizia minha mãe) com a fala vindo de uma pessoa que se dedica a autoras e teóricas gringas e raramente digita uma linha sobre o que é produzido no Brasil. escrevi isso por despeito e na próxima newsletter, volto para me desculpar de camiseta branca.
“quer dizer que o Brasil apesar de tudo vale a pena”. nunca foi sobre isso. logo quando passei no processo seletivo, disse que pior do que não realizar um sonho é realizar. continuo acreditando nisso. e continuo sentindo ranço da pessoa que coloca as coisas nesses termos. mas é difícil organizar um prólogo de uma conversa que está em organização interna e externa. vejamos. ou como se diz por aqui: é suposto fazer algo?









