Oi, espero que essa carta te encontre bem.
Tem um poema da Alejandra Pizarnik, publicado em Os trabalhos e as noites (Relicário Edições, 2018. Tradução de Davis Diniz) que diz assim:
Tu eleges o lugar da ferida
onde falamos nosso silêncio.
Esse trecho faz parte do primeiro poema do livro e chama-se Poema. Estou num relacionamento unilateral com ele e não consigo avançar porque tenho pensado na geografia das minhas feridas e nos silêncios que me colocaram aqui, nessa cadeira gamer ao invés de num punhado qualquer de água pra aproveitar essa tarde de sexta assustadoramente quente. Já tem um tempo que tenho esse texto aqui escrito na minha cabeça. Eu tinha outros planos para esse conteúdo, mas. Mas aconteci.
Também aconteci no ano passado, mas foi diferente. 2021 foi o ano em que ouvi NÃO. Em 2019, eu havia recebido uma bolsa ProAc e, em 2020, escrito e lançado um livro sobre luto em plena pandemia. Não fiz pão, não consegui manter meu pé de alecrim vivo e nem tomei sol. Mas escrevi e publiquei meu primeiro livro e me sentia bem, feliz comigo. Era como se eu tivesse achado meu eixo, meu motivo pra sair da cama e, ainda de pijama macio e chinelo, andar felizinha pela casa onde moro e trabalho. Decidi então que, em 2021, eu viveria o sonho e reformaria minha vida. Seria mais escritora e menos jornalista. Então aconteci. O mantra all by myself aconteceu.
Aconteceu como na cena icônica que abre o clássico Bridget Jones. Daquele jeito mas sem vinho e de pijama roxo. Me candidatei a cargos, fiz entrevistas e participei de processos seletivos, fui indicada para outras tantas vagas e ouvi não em tudo. Não. Não. Não. Em tudo. Parece absurdo fazer essa conta no ano em que a pandemia encontrou o cenário perfeito para ser cruel no Brasil, mas foi por isso que quis fazer outras coisas em outros lugares. Eu não suportava mais escrever obituários, principalmente de pessoas conhecidas. Junto disso, os pisos da minha casa começaram a quebrar e estourar. O auge foi na véspera de Natal, quando os azulejos na frente do fogão estouraram com o calor do forno. Há muitos jeitos de ser assombrada por uma casa. Foi quando entendi, de verdade e sem anestesia que não vai rolar. Não pela mão dos outros, só pela minha. Mas estou exausta. Tipo a Juliette.
Pra cada não, um curso. Fiz muitos cursos. Cursos demais. Tanto como aluna quanto como professora. Como se cada coisa aprendida ou ensinada fosse consertar o que eu sentia. Só que a verdade é que eu sentia nada ou quase nada. Deixei, inclusive de deitar no divã. Foi um ano de muita irregularidade na análise e isso talvez tenha me afetado. Segui por todos aqueles meses tal qual uma ginasta de alta performance. Fui tocando a vida fingindo que nada está errado.
Deu errado o trabalho - emprego - cliente? Levanta, abre os braços e sorri. Precisa agilizar a mudança sozinha? Levanta, rebola e sorri. Levanta e sorri. Sorri. Fingi que nada estava errado por mais de um ano, até que parei de sorrir. Não sentia nada de bom mesmo consciente de que muita coisa legal aconteceu em 2022. Tudo o que fiz e vivi em 2022 foi acompanhada da depressão. Marguerite Duras, no ensaio que dá nome ao livro Escrever (Relicário Edições, 2022. Tradução de Luciene Guimarães de Oliveira) diz que
É numa casa que a gente se sente só. E não do lado de fora, mas dentro dela. […] Em casa, porém, ficamos tão sós que às vezes nos perdemos.
Em algum momento desse texto, mencionei de forma bem casual, que tinha que fazer uma mudança. Mudei para um apartamento. huge mistake. Todo mundo odiou, menos a Fifis que podia ir pra escola de tirolesa. Se esse fosse o meio de transporte oficial, ela poderia sair da cama e pousar na carteira, segundos antes da aula começar. Mas pra mim e pras cãs? huge mistake. Troquei um quintal com jabuticaba, silêncio e lavanda; vizinhos que dividiam manga e um escritório com porta por um apartamento. Meu incômodo é tanto que estou em busca de um bom fone com cancelamento de ruído. Hoje, enquanto escrevia esse texto, uma senhora tentou entrar em casa achando que era o 801, quando ela me explicou disse que sempre faço isso no 501. O consultório da minha analista fica no quinto andar, mas em outro prédio.
Em outubro, alguma outra coisa quebrou em mim quando me deparei com essa matéria da Piauí com perfil das escritoras que participaram de uma foto formada apenas por escritoras E responderam a uma pesquisa feita pelas articuladoras. Das 1649 mulheres que participaram da foto, apenas 24% ou 393 responderam a pesquisa. De todos os números, o que mais me afetou foi saber que, dessas escritoras, apenas 6% recebem o suficiente para dizer que vivem de literatura. Apenas12 escritoras relataram uma renda acima de dois salários mínimos por mês. Não chamo a foto de histórica por questões pessoais e não me exponho por razões jurídicas. A maternidade solo já me obriga a ter advogada. Não posso com mais perrengue. Mas a questão é: eu gostaria de escrever mais, outras coisas que não as coisas que tenho escrito como fonte de renda. Tenho até medo de pensar isso e perder o que tenho e as coisas ficarem mais difíceis que já são. Assim de saúde mental. Exatamente assim. Desde então tenho ouvido muito, muito mesmo, Sangue Latino do Secos & Molhados.
Minha Mãe cantava essa música sempre que cozinhava. Ela nasceu no Mato Grosso do Sul e, quando criança, morou no Rio. Aí quando ela cantava essa música tinha um resquecídio de sotaque carioca ali. Primeiro ouvi essa música na voz dela e sinto muito por não poder dividir isso com vocês, mas tem coisas que são apenas minhas. Sempre choro um pouquinho com essa lembrança porque me faz pensar que a Mãe não tinha uma paixão que fosse dela. Só água, a Mãe era louca por piscina, rio ou mar. Então tem essa tristeza dela impregnada em mim. A Mãe era cozinheira e tinha um certo prazer em dizer que odiava cozinhar e que só fazia por ter filhos famintos e um marido em constante estado de desemprego. Mas a Mãe cozinha realmente bem e chegar na casa dela era uma experiência sinestésica que envolvia o cheiro dela, da comida, a música e o sotaque. Só que a Mãe, Minha Mãe, não foi feliz consigo. Assim como a mãe dela e a mãe da mãe dela e tantas outras antes e durante. Por muito tempo, logo depois de eu ter me tornado a mãe, achei que seguiria esse caminho. Esse pacto. Entre descobrir a escrita e a prática da escrita, existiu a casa. A casa mastiga e devolve a gente. Todo dia um pouco, um pedaço grande e dolorido. Minha música com sotaque especial é no papel. Entre um afazer doméstico e outro, escrevo.
Fui então pensando e elaborando como lidar com a escrita de um jeito que fosse meu. Escrevi duas cartas em dezembro e deu. Tinha planejado três ou seis. Parei na segunda porque não havia nada mais a ser dito. Eu não estava fazendo a minha parada e, como dito por Aline Valek e a Baronesa Elsa Von Freytag-Loringhoven, eu só tinha que fazer as minhas paradas.
Trocamos imaginação por eficiência. Eficiência para engajar mais, para provar, com números, que você é boa no que faz, que chegou lá primeiro que os outros. Eficiência para entender um padrão, entrar nele e produzir algo que seja reconhecível como um exemplar bem-sucedido de seu gênero. E de que diversidade de padrões dispomos hoje! Só escolher o seu e tentar se encaixar. Pertencer, no fundo, acaba sendo o maior dos desejos. Muitas vezes, acaba sendo maior do que o desejo de criar. - Aline Valek
Aqui a Aline me apresentou a poeta, artista visual, atriz, performer e modelo alemã Baronesa Elsa Von Freytag-Loringhoven enquanto falava sobre como a internet, assim como a casa, engole a gente. De um outro jeito, mas com o mesmo fim. Escrever para quem? Escrever para quê? Me pergunto isso desde 2000, quando escrevia no meu primeiro blog, o Minha Mãe Não é Fanha. [Ela sempre esteve lá, comigo. Freud vem cá.] Não sei porque as pessoas escrevem, mas sei que eu escrevo para existir na vida e no papel. Também escrevo porque é o que eu sei fazer. É o que eu faço. Eu escrevo.
Foi quando me peguei pensando no que eu queria fazer com isso, qual era a minha parada na escrita. Quero publicar em livro, em newsletter, em lambe-lambe, em fanzine? Essas foram algumas das formas que experimentei e gostei mais de umas que de outras. Aonde e onde escrever também são questões a serem observadas porque elas falam da nossa identidade, do lugar que ocupamos. Sem nenhum curso no horizonte, resolvi estudar por conta (e esvaziar minha caixa de entrada que estava RI-DÍ-CU-LA) e fui ver o que as pessoas que gosto estavam fazendo. E eu? EU tinha um plano.
Tudo o que eu tinha era um plano: vou parar meu trabalho e fazer um recesso de duas semanas e ler e assistir e ficar na piscina do clube e descansar. Tive que adiar a parada em quase três semanas e no penúltimo dia antes do recesso tive uma crise de choro por não suportar mais o barulho do trânsito, o telefone tocando, as mensagens de WhatsApp, os e-mails da gráfica. Entreguei e parei. Pela primeira vez em anos - sou PJ - eu teria um recesso de duas semanas. Choveu todos os dias; fiquei presa no apartamento com a Fifis, a esposa, duas cãs e uma gata; precisei tirar um dente e fazer uma raspagem na gengiva; me pediram trabalho nesses dias e, dormi. Li pouco, vi pouco, escutei pouco. Nos primeiros 15 dias de 2023, chorei e dormi muito. Muito mesmo. Ao fim do recesso, eu estava um pouco melhor. Duas semanas depois de voltar ao trabalho, o zumbido no meu ouvido, provocado pelo estresse, voltou mas está um pouco mais baixo. Alguma coisa mudou. Entre as coisas que li nesses dias, estava a newsletter da Carla Soares. “Fui capaz de ver que realmente ainda posso melhorar muito, mas é como se agora eu tivesse um outro parâmetro do que realmente posso chamar de defeito.”, essa fala da Carla conversou com uma outra coisa que habitava a minha cabeça desde que fiz um curso da Manu Barem, duas vezes por sinal.
No curso de Conteúdo Digital, ela apresenta uma série de questões sobre a produção de conteúdo e uma delas me pegou bastante. No que você é diferente? A minha presença na internet me ensinou muitas coisas que não sou e durante muito tempo tentei fazer coisas que conversavam com o hype mas não comigo. Não pensem que me vejo como um alecrim dourado, pelo contrário, estou bem ancorada na linha mediana e vivo bem com isso. Não me odeio o suficiente pra produzir determinados conteúdos e nem me amo o suficiente pra produzir outros. Estou ali, no grupão. Se esse fosse naquele programa do Silvio Santos [que morte horrível, né?] que você precisa escolher uma resposta e ir, eu nem ia aparecer na foto ou vídeo. Tenho um exemplo melhor. Se eu fosse no programa Porta da Esperança, a porta sequer abriria porque eu não saberia pedir. Identidade? Talvez. Vou cometer uma Fleabag e dizer que, assim como ela, eu queria que alguém me dissesse o que vestir, o que comer, o que sentir, o que escolher.
Ser responsável pela minha própria vida é estar mergulhada num oceano de incomunicabilidade. Dia desses, pedi uma carta de recomendação a uma professora que não via há 10 anos. Ela estave na minha banca de qualificação e me estendeu a mão no momento mais baixo e dramático do mestrado. Saí de lá moída e entrei num ponto do mar em que cada perda era um caldo. Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos. Houve um dia, em Amaralina, que resolvi pegar um jacaré com uns meninos que estavam lá. Depois de muitas tentativas, eu estava sobre a onda e é muito massa. A onda sustenta teu corpo e teve leva adiante. O vento, o barulho do mar e a queda. A onda simplesmente sumiu debaixo do meu corpo e eu caí de cara na areia e antes que pudesse entender qualquer coisa, outra onda veio e arrastou minha cara, meu peito, minha barriga na areia, nas pedrinhas. Outra onda e outra quebrando na minha nuca. Quando saí, sentei na areia cansada, com sangue saindo do nariz, rosto-peito-barriga ralados e biquini rasgado. Precisei de um bom tempo de silêncio pra responder que sim ou não ou não sei quando me perguntaram se precisava de ajuda. Tem coisas que a gente não pergunta, faz.
Como ia dizendo, dia desses pedi uma carta de recomendação a uma professora que não via há 10 anos. Ela me fez chorar com a carta por relatar, em detalhes, todas as vezes em que nos encontramos e eu apresentava trabalhos analisando o silêncio e a incomunicabilidade. Eu entendo porque a Ferrante coloca professoras diantes de Lenu como uma porta, uma ponte. Porque sempre foram elas, as professoras de português-literatura-história que salvaram do que estava posto pra mim, pra minha mãe, pra mãe dela e pras outras mães que vieram antes e durante. Na carta, a professora fala sobre um ingrediente essencial das minhas análises que é a imaginação. Rompi tratados, traí os ritos/ Quebrei a lança, lancei no espaço/Um grito, um desabafo/E o que me importa é não estar vencido
Aquela carta de recomendação foi uma carta de autorização porque é baseada exclusivamente nas coisas que fiz de fato. Tem coisas que só podem ser vistas e contadas por uma mulher que entende o espaço da incomunicabilidade. Do silêncio.
Eu tinha feito planos pra essa newsletter, com começo-meio-fim. Ia contar sobre como trabalhei nisso e naquilo e no que li e no que escrevi e no que vi. Mas tem horas, tem dias, que a gente precisa entender que não é igual e nem vai ser. Não fiz harmonização. Eu tinha planos. Tinha. O que eu não tinha, de verdade, até agora, é parado pra entender e fazer [bem feito] esse interlúdio. Essa newsletter vai como o que é: um episódio de início de temporada que não diz muito bem a que veio mas está bem amarrada na estratégia de anunciar sem prometer. Até mais,
Fabrina
Twitter
Site
Fabrina, que texto. Cheguei nele só agora, mas me recuso a achar que vim atrasada porque de dívida não sei quem não anda cheio rs. Fiquei feliz de me ver ali no meio conversando contigo, e a conversa tava tão boa que segui nela espalhando seu texto ali no meu canal no telegram. Vai sair também na minha próxima newsletter esse domingo porque aqui tem um monte de questão que me interessa. Incomunicado direitinho. Beijo imenso
Que texto bonito! Senti várias coisas conforme você ia trazendo os acontecimentos, da melancolia à empatia, passando por tantos outros. Muito vida real, acho que foi isso o que mais gostei. Espero que o ano traga coisas boas, traga mais janelas. E que seja suave. Beijos!