Possível trecho do meu novo livro ou as coisas que eu queria ter dito pra minha analista e pra ela
Oi gente, tudo bem?
Oi gente
Oi.
Então.
O texto abaixo segue aquele nosso combinado de "escrevi, não revisei e mandei" mas não muito. Dei umas revisadas porque pode ser parte do meu novo livro que talvez seja o segundo volume da Trilogia do Luto e ou talvez sejam coisas que eu queira dizer HIPOTETICAMENTE para minha analista e pra ela. Vou colocar uma fotinha pra ilustrar esse momento. Em que faço tudo errado. Nem todos vamos andar de bicicleta em Napoli, não é mesmo? Mas não custa sonhar. Ou custa? Custa sanidade. Lembrando que é um rascunho, é ficção e ceci n'est pas une vérité.
Parasita (2019 mas dando dicas de 2020)
Tem uns dias que preciso expressar uma coisa e não tenho encontrado o jeito certo e escrever sempre foi uma forma de comunicar o incomunicável. Então já aviso que vamos à mais uma exposição desnecessária para debater um assunto que deveria ter ido pra minha terapia mas por muitas coisas não rolou ainda. Inclusive passou tanto tempo (umas seis semanas, acho) que seria mais fácil reeditar Frances Ha (2012) pra ela. Gosto e não gosto desse filme. Na verdade eu gosto muito (mesmo) da Greta Gerwig, mesmo ela sendo magra e loira e rica. Inclusive todo filme Adoráveis Mulheres ganhou um lugar cativo na minha memória por causa da cena em que a Jo (Saoirse Ronan) chora pra sua mãe (Laura Dern te amo) e confessa que está cansada. Isso depois de uma conversa sobre amor, casamento, carreira e ser mulher. Até então tudo ia bem, mas caí no choro quando ela diz que está cansada. Quem não está?
Vamos voltar ao fato inicial, Frances Ha.
* Início do momento Luciana Gimenez*
A expressão undatable é usada no sentido "inamorável" ou algo assim. É isso que Frances é. Undatable. Não sei como se fala no Brasil mas, cá estou eu, na minha escrivaninha de madeira garimpada numa loja de móveis usados, em Marília, completamente undatable.
* Fim do momento Luciana Gimenez*
Inamorável (mordo uma pelinha do lábio enquanto penso nisso)
No meu primeiro ano de faculdade, o professor pediu um texto sobre algo que queríamos falar pra alguém e por uma razão qualquer não falamos. Na época, eu estava num relacionamento não relacionamento com quem vivi meu primeiro namoro (aka primeiro beijo, primeiro medo, primeiro amor, primeiro orgasmo, primeira rejeição) e tudo ia muito mal obrigada. Nós não éramos nada depois de termos sido tudo. Em silêncio. Nunca contamos a ninguém que éramos namoradas. Nunca contamos a ninguém que não éramos mais namoradas. Tudo aconteceu no silêncio e no escuro.
Foi quando minha mãe me deu um livro (que ela disse que tinha ganhado da vizinha). Tara da Cassandra Rios. "A fulana disse que você vai gostar", ela disse. "Todo mundo sabe, eu sei mas não vamos falar sobre isso. Leia", eu ouvi. É. Aí tinha uma cena, acho que uma carta, em que ela fala sobre amor, desejo e casamento. Copiei (dei créditos) e entreguei ao professor dizendo que não saberia fazer melhor, que ele aceitasse por favor. Tirei zero mas algo em mim assentou ao reescrever, com minha letra, aquele pedido. Quando a gente apanha muito, na cara principalmente, uma parte nossa deixa de existir. Esse livro morou na minha bolsa por meses. Era o que eu tinha, sabe? Nunca nem procurei outro dela. Abria e lia sobre essa mulher que ama outra mulher sempre depois dos tapas. Era tipo um remédio. Acho que foi ali que decidi que não ia ser Tara, mas Cassandra.
Tem uns dias que troquei de psiquiatra (nem me despedi da antiga ainda. seria traição?) e contei a ela todo meu processo de ir e vir em diferentes médicos para que eu fosse quem minha mãe queria que eu fosse apesar de mim. "Terapia de conversão?", não respondi. Não vou responder pra ela, pra mim, escrever aqui ou lá. Nunca. Não consigo, não quero e não vou lidar com isso. Tem coisas que precisam continuar enterradas para que andar sobre a terra seja possível. Farei 50 anos. Velha demais para uma morte intensa e rápida; jovem demais para uma morte lenta e dolorida. Sempre dramática. Nada na vida é mais revelador que um tapa na cara. A mão espalmada, a pele fina do lábio adolescente que rasga no aparelho, o cheiro do sangue que foge narina afora, o zumbido no ouvido. Talvez por isso eu ainda tenha esses gafanhotos dentro da cabeça, uma nuvem que foi arrancando pedacinhos até deixar as coisas desconexas e barulhentas e falhas. Quando eles acordam, entro dentro de mim e os ouço. Esqueço o fora. Teve uma época que pra sobreviver, deixei que eles me cercassem e me cobrissem e se transformassem num grande escudo barulhento e trêmulo.
Casar cura, disseram elas. Terminei a faculdade e usei todas as drogas que me deixaram destruída o bastante para aceitar a conversão, o avesso. Em nome da mãe e da filha não foi feita a minha vontade. Agora Safo é morta. Semanas atrás, eu entraria na sala da minha terapeuta e diria quero ser namorada dela. Hoje percebo que sou inamorável. Não do jeito da Frances Ha ou da Jo. Do meu jeito mesmo. All you need is love, me disse a Jup do Bairro. Como qualquer pessoa normal, desejo a reciprocidade. Mas o que é recíproco quando se tem a oferecer tão pouco?
Ela me disse que eu não confiava nela. Neguei. É verdade. Não confio. É esperador. Mas tem outro tipo de reciprocidade que espero. "Você me estuda e sabe como quero e gosto". Estudo. Percebo. Ouço. Eu sinto. Sinto muito. Agora eu sinto menos. Remédios. Muitos. Apenas coisas que ultrapassam a barreira do embotamento são sentidas. Ondas se tornam gotículas rebeldes. Já não sinto muito, mas sinto culpa. Num primeiro momento, não estar na condição de namorada foi emocionante. Havia o investimento, o desejo. O que veio a seguir foi uma carreata bizarra de sentimentos. A coisa que eu mais dizia - a ela, a mim - é preciso me organizar. O tempo foi ficando escasso e eu fui sentindo certa vergoinha de coisas que amava muito em mim. Meus cabelos brancos. Porosos. Meus, tão meus. Tão criticados que foram pintados. Por mim, em casa. Talvez seja isso que eu queira falar com minha analista. Fui traída. De novo. Por mim.
De novo.
Foram dias e dias de culpa por ter pintado o cabelo. Tinha planos de ser eu, somente eu nas minhas cores, texturas, tamanho e sabor. Tinha planos de deixar-me crua, apresentar-me a mim nua. Desisti deles pra agradar outra pessoa que não eu, para gemer tua. O que eu queria ter dito pra ela, depois de responder uma declaração de amor com 👍, é que eu não posso/quero/consigo/vou aceitar esse tipo de amor exigente em que os pedidos para eu ser outra coisa que não eu aparecem de forma explícita ou velada. Você já leram Fome da Roxane Gay? Amo demais esse livro e só tenho em Kindle. O físico que comprei dei pra essa pessoa que gosta de mim mas não quer ter um corpo como o meu. Ela não leu. Ela não lerá. Fome estraçalha a crença e a cultura de gente magra. E gorda. Ninguém sai impune desse livro porque Gay deixa bem evidente que o que a gente sabe não é o mesmo que sente. Sinto saudades de estar perto mas estar perto me deixa com saudades de mim. Talvez eu tenha vivido muito tempo sozinha. Talvez eu tenha vivido muito tempo sozinha?
Frances Ha surtada (2012)
Sei que ela não é uma boa pessoa para citar nesses dias MAS Naomi Wolf fala que “Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada.", e errada ela não está. Sabemos disso. O Brasil ainda é um país que afunda diariamente na miséria e na fome mas alimenta a indústria da dieta. Nada de novo, afinal. Estar com alguém é fazer concessões que não sei se quero fazer. Estar com alguém é oferecer coisas que não tenho a oferecer. Não estou falando de namoro ou noivado ou casamento ou fuga para as montanhas. Estou falando de relacionamento puro e simples. O que me faz gozar é reciprocidade. É não ter que repetir duas vezes as mesmas coisas; não ter que correr pra depilação ou justificar meu cabelo num dia corrido de home office. É não me sentir traída porque me são cobradas tantas coisas de forma unilateral que simplesmente não consigo mais confiar. Voltei a perguntar aonde você estava e com quem você estava quando isso claramente não é problema meu. Problema meu, de verdade, é ser inamorável. Eu só gozo com responsabilidade. Afetiva. Meu não relacionamento mais estável é com meu sugador. Yep, oversharing.
Mas quando a câmera abre e vejo aqueles olhos grandes, castanhos nuns dias e verdes em outros, o racional em mim é assassinado pelo cio. Minha boca abre um pouco, o peito sobe outro pouco na espera do ar preso na garganta. Os mesmos olhos que conheci aos 13; que se fecharam ao me beijar aos 14; que se abriam nos gozos dos 15, que me amaram desesperados aos 16; que me traíram tantas vezes aos 17, que me expulsaram aos 18, que me quiseram aos 19 quando eu já era dor e descrença e aceitação do avesso da conversão da solidão da tristeza e da certeza de que eu só seria quem sou com ela se fosse eu crua no mundo. A pele quente feito lava, o lábio macio e rosa e violento, o jeito de gemer meu nome dentro da minha boca. A câmera abre e vejo uma mulher cansada do trabalho, dos preços abusivos do mercado, da tentativa de se achar-se depois de tanto tempo perdida de si e em outras. Abro a câmera e vejo uma mulher de preto e sua cerveja; vejo cabelos compridos e bagunçados(que ela nega) que são como cortinas protetoras de nossos beijos, copos e xícaras e taças rosas. Queimados. Penso em sair na chuva fria e voltar com xícaras iguais. De um jeito, de qualquer jeito, ter a boca dela na minha toda manhã. Eu sei que ela vai foder comigo. Quando a câmera abre eu vejo uma mulher que vai foder comigo. Mas o que eu sinto. O que eu sinto me destrói.
Quando a câmera abre eu sinto casa.
*** Escrevo e mando. Sem revisão. Respeito os erros e os atos falhos para que essa conversa seja o mais natural possível. Se é que isso é possível. Por onde estou:
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