Descrição do áudio:
Então. Essa é a minha voz e é a mesma desde que 12 anos e eu vou tentar soar normal. Por favor, não criem expectativas e se criarem não me cobrem por elas. Tenho sérias limitações. Vai tudo sem edição, bem cru, tá? Houve algumas épocas em que ela tinha traços de bebida, cigarro e descaso. Agora é só a voz de uma mulher exausta mesmo. A primeira newsletter foi enviada em 2016 quando comecei a fazer análise e estava diante de algo que naquela época era novo e agora é parte da minha vida e segue novo porque tem os traumas antigos, os novos, os desconhecidos e os que estão para chegar afinal é cada tombo que de tédio minha analista não morre. Inclusive, o último tombo que levei resultou em vários machucados no pé, joelho, pulso, cotovelo e orgulho. Foi um desmoramento. Estava atravessando a rua, prestes a chegar na escola para votar no Lula, segundo turno e tals. Desmoronei. Sentei na sarjeta, engoli o choro, votei mancando, voltei pra casa e chorei. De dor, de alívio, de exaustão. Mas então, quando comecei a terapia em 2016 experimentava um momento de solidão profunda e estava procurando meu lugar - qualquer lugar, um pedacinho qualquer de chão - em que eu pudesse existir. Aí fui olhar aqui nos arquivos e vi que entre 2016 e 2022 mandei cartinhas esporádicas e considerando os anos que elas circularam, entramos na sexta temporada que vou chamar de Kit de primeiros socorros para dores musculares. O nome veio de uma caixa de remédios velha que encontrei na feira do rolo aqui da minha cidade. Ela fica na minha mesa e está cheia de coisas que posso precisar durante o dia de trabalho, tipo ansiolítico, uma polaroid e própolis. Se vocês quiserem ver essa caixa ou o que tem dentro, me dá um toque que eu publico lá no instagram.
P.S.: Gravei e não ouvi mais. Fizo que pude e Deus me perdoe.
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Oi.
Já tinha tempo que considerava a possibilidade começar a sexta temporada de três ou seis episódios (veremos) desta newsletter no Dia de Finados pela poesia do dia; pra ter uma data limite tipo o Chico Xavier (todo mundo deveria ter a sua) e, talvez ou principalmente, por considerar que escrevo sobre luto e liberdade e maternidade e essas coisas, assim como o Dia de Finados, exigem de nós muita vida.
Vencemos. Mas a que custo, hein? Na semana que antecedeu o segundo turno, eu era qualquer coisa menos uma pessoa. Lembro que em 2018, chorei travada de medo. No último domingo, chorei largada de alívio. Foram quase quatro anos pensando diariamente numa arte da Laerte. Essa aqui ó:
Desmoronou. Minha ficha desmoronou um dia antes do primeiro turno quando, numa reunião de família, dois bolsonaristas me colocaram em risco para se manterem seguros. De muitos jeitos. Cheguei em casa e, depois de horas de silêncio, consegui contar pra minha namorada o que tinha acontecido. O choro começou ali, emendou com o resultado do primeiro turno no dia seguinte e entrou semana adentro junto com a certeza de que mais de 50 milhões de pessoas (inclusive ou principalmente as minhas?) estão dispostas a rifar a mim, você e tantos outros que não cabem dentro do imaginário perverso deles do que é ou dever ser uma pessoa.
Grande parte das pessoas que escolhi para mim só são possíveis via internet. A densidade demográfica do meu cotidiano é solitária. Os últimos quatro anos foram surreais. Não sei se consigo explicar, de verdade. Tantas coisas aconteceram. Resolvi escrever livro, fui premiada pelo ProAc, escrevi livro, participei de antologias, publiquei livro. Inventei uma realidade, distorci fatos, matei e ressuscitei pessoas nas palavras, no silêncio das entrelinhas. Nesses quase quatro anos de um governo de morte, sobrevivi no colo do silêncio, apartada e enlutada. A morte é um país sem anistia e o luto é um idioma com vários dialetos. A vida segue com sua lista de mercado, um passinho de dança no banho, uma risada forçada e outra honesta. Mas tem essa outra vida, dentro da gente, que corre sem anistia e no seu idioma. Entre tantas coisas a serem sentidas, acredito que cada pessoa exerça um papel em próprio país, com seu idioma e dialetos.
Sou uma escritora que escreve sobre mulheres que amam ou se relacionam com mulheres: mães e filhas; filhas e mães; amigas; avós e netas; amantes; esposas; namoradas; irmãs e o que mais for possível. Meu idioma é o luto e meu dialeto é mulher.
Há várias maneiras de sentir ausência mas quando a morte se mete na realidade, temos uma prova inquestionável de que a gente pode acabar do nada. Assim mesmo, do nada. Aconteceu que nesses últimos quatro anos tivemos que lidar com a consciência de que nos querem mortas. O resultado do primeiro turno das eleições presenciais de 2022 nos provou que a gente subestima o tanto que nos odeiam.
Como diz aquela música, mesmo? The world is a vampire. A gente sabe mas naquelas de não querer acreditar. Que paulada. Acho que me perdi. Aviso que a partir desse momento serei o próprio meme da Jamie Lee Curtis. Andei bem obcecada por esse meme, quem me segue no Twitter (@fabrina) sabe.
Inclusive, que mulher. Obrigada por tudo.
O que desejo de verdade é falar do luto que tem sido compartilhado a rodo nas ‘redes sociais’. Aquele luto que está escondido numa arte de Corel (no máximo) com fundo preto com o olhinho e a bandeira sangrando ou algo equivalente. Queria muito pegar leve aqui, mas vou falhar. Tenho profundo desprezo por essa imagem e a forma como ela tem sido usada para sinalizar a derrota do Bolsonaro nas eleições. Da minha parte, escolho mostrar uma foto da ©AFP digna da palavra luto:
Ativistas do Rio de Paz criaram 100 sepulturas em Copacabana (RJ) para simbolizar para lembrar as mais de 40 mil pessoas mortas por Covid. Isso foi em junho de 2020, até o momento já morreram quase 700 mil pessoas. Como dito por Suassuna, a gente precisa ter cuidado na hora de escolher as palavras. Luto a gente usa quando centenas de milhares de pessoas morreram por uma doença que já tinha vacina. Não me interessa procurar a palavra adequada pras pessoas darem nome ao que elas sentem pela derrota vergonhosa e indigna do Bolsonaro.
Não foi fácil admitir que o luto que sinto é pela consciência de que nós seremos os primeiros a serem abatidos. Em qualquer tempo, em qualquer lugar. O surreal é a forma como isso se dá. Não consigo traduzir, então vou contar uma história. Outro dia, minha namorada e eu saímos pra passear com as nossas duas cachorras e fomos atacadas pela cachorra que mora na casa ao lado do prédio onde moramos. A vizinha deixou o portão aberto, a cachorra fugiu, nos atacou, gritamos, depois de um tempo surgiu um homem que levou a cachorra pra dentro da casa dela, a vizinha apareceu e fechou o portão do corredor aonde a cachorra fica. Subimos pro apartamento, cuidamos delas e de nós. Voltamos para falar com a vizinha.
Pois bem. Aqui eu começo a perder a boa, levanto o dedo, me ajeito na cadeira, cruzo a perna, respiro fundo, pego o copo de alguém, bebo e bato com ele na mesa. POIS BEM, falamos pra vizinha que a Betânia (a cã caramela) tinha se machucado, mostramos a foto, falamos que nós nos machucamos e ela respondeu que não sabia do que a gente estava falando e que ela não tinha cachorra. E DIGO MAIS, a cachorra estava na nossa frente, no mesmo corredor onde ela a colocou. Latindo, a cachorra estava latindo. Mas ela jurou que a cachorra não existia. Por fim, ameaçou chamar a polícia contra a gente porque a gente estava dizendo, entre outras coisas, que ela tem uma cachorra. Desistimos. Desisti. Subi e tomei cerveja em silêncio.
Raramente bebo.
Essa história é meu exemplo favorito pra falar desse meu incômodo. Existe a dimensão da realidade e existe uma outra dimensão que veio à tona e nos obrigou a aceitar (não sei se a palavra é essa) como opinião todo ódio que sentem por gente como a gente. Não é que descobri agora, sou trouxa mas nem tanto. Há muitas jutificativas pra quem votou como votou em 2018. Mas agora? Isso me quebrou ainda mais e não é possível dizer que eu estava inteira. Essa coisa das dimensões distorceu minha visão de mundo, do que é uma pessoa ou do que é o mínimo aceitável. Não estou falando de ter os lábios que o Instagram mostra que a gente deve ter ou de viver uma vida tipo romance de Murakami (Jazz, Drinks, um sexo com qualidade pra lá de duvidoso com uma pessoa mais prejudicada da cabeça que você) ou reels engraçadinho com a nova da Taylor ou Beyoncé dependendo do seu estado civil. É outra coisa.
É saber que aquela piada infame é uma ameaça mas ficar na dúvida se aquela pessoa pode ou não colocar aquilo em prática. É ouvir que abre aspas se você escolheu essa vida fecha aspas seguido de coisas que ninguém, em nenhum momento, tem o direito de dizer a alguém. Que vida é essa que escolhi? Essa vida de mãe solo que tem que fazer 99,99% do trabalho sozinha porque o abandono é uma palavra masculina? Essa vida de amar uma mulher? Essa vida de me permitir ser amada por uma mulher? Essa vida de acreditar que aeroporto tem que ser mais cheio de rodoviária porque o mundo é pra quem quiser? Essa vida. Essa dimensão. Não sei mais lidar com essa dimensão do perverso e estava morrendo por isso. Morrendo talvez seja forte, mas estou medicada. Não. Morrendo é a palavra. Pela primeira vez, fui ao médico por medo de morrer da pressão. De dentro e de fora. Acordo suada, com taquicardia e mil pensamentos. Então, quando vencemos e do jeito que vencemos, parando um discreto porém indiscutível golpe nas urnas, uma parte minha desabou.
Desabei de verdade mesmo.
O último tombo que levei foi no domingo, minutos antes de votar. Estava atravessando a rua meio tensa porque moro no interior de São Paulo (nem precisa dizer mais, né?) e fui votar com uma camiseta do MST. Era algo importante pra mim. Muito importante. Eu estava com medo, ansiosa e tinha visto todas as notícias sobre a PRF no norte e nordeste. Foi quando teve o desmoronamento. Meu pé virou e tombei. Sentei na sarjeta pensando que tinha quebrado o pé tamanha dor, mas tinha outras. Tinha o sangue do joelho, da palma da mão, do punho, do cotovelo e do orgulho. Levantei num pulo e no susto recusei a ajuda de um cara (me perdoa, não foi pessoal) e dei de cara com uma guria de camiseta vermelha e uma toalha do Lula amarrada na cintura. Reconheci nela o passo apressado, o rosto fechado e o peito estirado. Ela me salvou. Pulei. Votei mancando, marcada, machucada. Voltei pra casa e chorei. De dor, de exaustão, de Brasil.
É muito cansativo estar atenta o tempo todo. De todas as coisas que esse governo me tirou, eu nunca vou perdoar ter perdido a leveza. Tinha uma parte minha que ria apesar das coisas às quais fui submetida por ser mulher ou gorda ou lésbica ou bi (questões) ou quem eu sou. Tinha essa parte que foi sufocada. Sinto muito, sinto a falta. Entendo que de fato exista um luto coletivo por tudo que vivemos e aqui estou falando sobre as coisas que nos foram impostas por essa necropolítica. É ridículo usar a palavra “luto” para representar o que se sente pela derrota de um genocida nas urnas. Até porque o Brasil é um país que não faz luto. Nós estamos tropeçando em cadáveres desde a invasão em 1500. A história do Brasil é cruel e nós não fizemos nenhum luto por mortes concretas, de pessoas reais em circunstâncias cruéis e infames. No Brasil, morre-se de absurdo. Agora, o que uma pessoa sente ao ver um metalúrgico chegar à presidência (pela terceira vez) com a promessa de reestabelecer dignidade aos indesejáveis tem outro nome. Luto não é isso. Luto é outra coisa. Esse governo de extrema direita também estabeleceu uma disputa no campo da linguagem. Agora, como último (espero) ato, tentam levar consigo a palavra luto.
A última coisa que quis pra mim foi ser somellier de luto. Mas tem uma hora que pra baixar a pressão dentro foda-se fora preciso ser aquilo que minha terapeuta chama de louca-normal, que é aquela pessoa que dá o primeiro grito quando o silêncio é de morte. Teve aquele momento, logo depois do discurso de vitória do Lula, que o Bonner mencionou algo como o retorno da normalidade. Num primeiro momento, foi assim pra mim também. Foi como um abafamento daquela dimensão. Mas não, não há normalidade ainda. Importante dizer que não estou falando do que está acontecendo nas estradas ou da birra dos perdedores. Estou falando do desmoronamento coletivo.
Então hoje, dia 02 de novembro de 2022, resolvi começar essa temporada falando sobre a necessidade de proteger o luto dessa gente que acha que nos querer mortos é direito e não crime. Me perdoem, vou citar Metallica.
Quando adolescente em Campo Grande (MS), eu saia correndo da escola porque tinha o compromisso inadiável de assistir a novela com Minha Vó. Nunca foi sobre a novela. Exceto com Pantanal e Ana Raio & Zé Trovão. Enquanto esperávamos a novela, ela me deixava assistir um programa de clipes regional e eu cantava, pra mim e pra ela, The Unforgiven. Ela me amava demais. Minha Avó tentava me ensinar a tricotar (sou canhota e ela destra) enquanto eu tentava traduzir The Unforgiven pra ela sem nunca ter conseguido fazer isso por mim. Numa dessas tentativas, pela primeira de muitas vezes, Minha Vó meio que já sabendo quem eu era; quem eu beijaria anos depois; o que fariam comigo por isso e o que eu faria de mim por isso; me disse que se for pra gente receber amor é pra receber direito e não de qualquer jeito. O que minha analista nunca soube e talvez um dia venha a saber é que Minha Vó tentava me ensinar que não dá pra ser de qualquer jeito, mas só aprendi ali, no divã. Na morte e no luto.
Bolsonaro recebeu mais de 50 milhões de votos no segundo turno e só apareceu pra agradecer seu fandom quase dois dias depois. Usou, de novo, palavras ligadas ao nazismo e fascismo em sua fala de menos de três minutos. Ele fez com seus eleitores o mesmo que faz conosco, os indesejáveis. Parte da nossa dor é ser descartável por gente que ocupa a mesma posição de descarte que nós. Tem algo de perverso nisso. Mais branco que eu? É claro que estou pensando em Bacurau, naquela cena.
O que foi feito conosco é imperdoável. O que esse governo fez é imperdoável. Vencemos e foi lindo. Foi incrível sentir esperança e vontade de ser feliz. Chorei lembrando tudo o que aprendi trabalhando no terceiro setor, num projeto ligado ao governo Lula. Chorei lembrando da bolsa Capes Reuni que me permitiu fazer mestrado e, consequentemente, me permite cuidar da minha família. Chorei largada, exausta, aliviada, nostálgica, esperançosa, acompanhada. Chorei como chorei nesses quatro anos. Só que eu não sou uma pessoa massa e há muito deixei de ser leve.
Há muito que desejo saber quem matou Marielle. E sei que não sou apenas eu. Nós passamos tempo demais desejando vacina e recebendo cloroquina; assistimos o desmonte da educação e vimos nossos professores e cientistas indo embora pra sobreviver; vimos um padre ser maltratado por cuidar de quem tem fome; eu vi três pessoas queimando carcaça e pele de frango no banco em frente à igreja para comer de jantar; ainda lembro de cada nota de falecimento que escrevi dentro e fora do trabalho. Vencemos porque sobrevivemos. Mas tem uma parte nossa que foi asfixiada nesse governo e isso não tem retorno. Não há anistia na morte.
Sobre mim: Escrevo e leio. Publiquei o livro Sabendo que és minha e você pode comprar um exemplar com dedicatória respondendo esse e-mail. Leio como mediadora do Leia Mulheres Marília. Faço outras coisas também mas como jornalista e pesquisadora, em essência, o que faço é ler e escrever. Ou escrever e ler.
Serviço: Essa newsletter é publicada todos os sábados, às 10h da manhã. Justificativa: Exceto hoje. Também não é sempre porque, por motivos de vida, tenho dificuldade em manter a regularidade da newsletter. No próximo sábado tem.
Links: Posso ser encontrada aqui: linktr.ee/fabrina. Justificativa: estou atualizando o site daquele jeito e há falhas. Me perdoem. Mas estou muito no Twitter.
quero ler seu livro! essa é a primeira news sua que leio e comento. adorei e te acompanharei agora.
:)