Vamos começar com Ana Cristina César
Quando comecei a fazer terapia, em 2016, eu dizia que poesia não era pra mim. Sempre tive medo de soar como aqueles caras brancos de barba que rimam aqui e ali e nossa poeta. Escrever poesia é um trem que exige da gente. Escrever exige da gente. Ela (a palavra) me disse isso. Os homens que passaram por cima da minha vida tentaram me dizer como eu deveria escrever., enquanto isso as mulheres não leram. Talvez seja por isso que escrevo tão pouco, que espere momentos como esse (onde existe a combinação de madrugada e sono para escrever). Até que um dia a poesia foi entrando de um jeito muito próprio na minha vida enquanto descobria poetas. As poetas. Tenho um carinho muito especial pela Cartilha da Cura porque ela tem algo de anunciação do que é. Qualquer interpretação mais técnica ou aprofundada esvaziaria isso que sentimos ao ler esse poema. Apesar dos esforços das mulheres e crianças, barcos afundam. O que me fez lembrar um tweet dizendo que, às vezes, a gente precisa parar de lutar, sentar no fundo do barco e assistir ele afundar. Não lembro quem disse isso, se souber me avise, pfv, preciso agradecer.
Dia desses, precisei acordar muito mais cedo que o normal para fazer exames de sangue. Uma quantidade obscena foi retirada e nem foi tudo no mesmo dia. Nesse mesmo dia, precisei deitar um pouco e apaguei por horas seguidas, quase três. Lembro de sonhar comigo me recriminado por dormir, dizendo que precisava acordar e chorando por não querer. Abria os olhos. Pesados. Voltava para o mesmo sono, para o mesmo sonho. Minha analista fala que o sonho protege o sono e aparentemente o trem foi bem literal. Entre minhas primeiras lembranças da vida está a vergonha de dormir, misturada com a sensação de que algo vai acontecer. Não necessariamente algo bom, mas algo. Lembro de ter uns cinco ou seis anos quando dormi no meio da tarde, algo raro, e acordei envergonhada. Dormi no chão da sala e vi minha mãe me olhando com cara de ué. Disse que eu tinha dormido e ela ah ok e a vida seguiu naquela sala com estante, sofá e tapete em diferentes tons de marrom. Neste, o dia desses em que dormi quase três horas, acordei tão ataratada quanto. Minha namorada fez uma piada sobre isso (dormir) e senti algo entre raiva e vergonha. Pensei em revidar. Mas revidar o quê? Pra quem?
Foi quando entendi. Dediquei muito tempo da minha vida no divã perguntando o que eu fiz de errado para as pessoas se sentirem no direito de fazer o que elas fazem comigo? È muita gente exigindo de mim coisas que sequer podem ser questionadas. Outro dia, minha namorada me contou que a amiga dela virou - do nada, do nadão - e perguntou qual o meu salário. Tem toda uma questão sobre não falarmos de dinheiro e tals, mas meio que me chamou atenção a curiosidade porque ela passa pelo tanto de valor que aquela pessoa atribui a mim. Não queria reduzir a isso, mas vou. Uma mulher que segue bolsonarista depois de tudo que presenciamos na pandemia.
Tem um episódio de Scandal, não lembro qual, que a Olivia Pope diz pra usarem o apito do cachorro. Foi a primeira vez que ouvi sobre a política do dog whistle que é comunicar algo que parece uma coisa no todo mas tem uma mensagem específica e diferente para um grupo de pessoas. Quando vou cortar meu cabelo (curto, sempre curto) e ouço que tenho um rosto lindo sei que há nesse elogio uma outra mensagem, bem evidente para pessoas gordas como eu. Outro momento foi quando um senhor que estava no mesmo projeto que eu me viu falando com um grupo de pessoas (chefes) do corporativo e veio me dizer que estava impressionado com a minha capacidade de falar com as pessoas, que superei as expectativas dele. Um exemplo da política do apito numa imagem:
A gente foi e segue sob essa política, agora na forma de protestos
O sentimento?
“Percebe Ivair” é um pedido de socorro
Por fim, uma foto da Beroka pra limpar o ambiente
Limpa, limpa, limpa, limpa todo ódio coletivo
Acontece que tão bom quanto meu alerta shimabalaiê é meu sensor de apito de cachorro. O problema é que meu choque com a tranquilidade das pessoas agredirem sem esperar resposta nunca reduz. Na verdade, tem aumentado bastante. A cena sempre a mesma mas com algumas variações.
Eu e minha terapeuta na sala e eu contava algo e dizia que eu precisava saber o que eu fazia para deixar as pessoas tranquilas o suficiente para me tratarem da forma como me tratam, falar o que me falam, fazer o que fazem e seguir como se fosse normal. Muito tempo de divã para entender que eu validei esse comportamento ao confundir gratidão com servidão. Sempre soube que isso acontecia com a minha permissão, mas aonde? É tipo sair de casa de manhã pra fazer mil coisas na rua e só se dar conta que perdeu algo ao voltar pra casa, ao anoitecer. A melhor opção é sentar no sofá e repassar o dia, segundo a segundo. É exaustivo repassar uma vida, segundo a segundo, pra encontrar o erro e então corrigir a rota. Uma vida toda.
Entendi isso depois de assistir que horas ela volta. Nessa cena aqui ó:
A Val diz que roubou, mas o nome disso é reparação
Quando ela vai colocando xícaras e pires na mesa, comparando-as à própria filha (diferente igual tu) vemos a reparação de muitas, de tantas coisas. No filme e na gente. Eu sou filha da merendeira e vi minha mãe se sujeitar a muita coisa para que nós, os filhos, tivessemos acesso à educação. Durante um breve período da vida, fui professora eventual e quando dava aulas na escola que minha mãe trabalhava a diretora sugeria, gentilmente, que eu fosse pra cozinha ajudar minha mãe a servir os alunos ao invés de ficar na sala dos professores preparando aula ou existindo. Há poucas semanas ouvi o apito de cachorro aqui. Talvez por isso eu tenha ouvido o apito do cachorro quando a amiga da namorada, logo depois de vir em casa, questiona quanto eu “ganho”. Pode até parecer mas nunca é do nada, do nadão.
Alerta de spoiler: eu não ganho. Trabalho. Inclusive, de forma precarizada.
Minha mãe amava piscina, rio, mar. Nunca fizemos isso juntas.
Aí que resolvi tirar o sonho da gaveta e lidar com esses lutos todos do jeito que sei. Escrevendo. Aqui também, mas resolvi voltar a estudar e isso me obrigou a ler Lacan. Até o momento, tudo o que alcancei é que as capas dos seminários estão entre as piores que já vi. Mas entre elas, as capas, tem algo que me encaminha nos detalhes. Estava folheando um PDF (Seminário 17 - O avesso da Psicanálise) quando ele começa o texto III Saber, meio de gozo com a frase
Deram-me giz vermelho, de um vermelho forte. Vermelho sobre preto, é claro que não fica legível.
Achei bem bonito isso estar lá, esses pequenos surtos. Imagino que tenha outros, mas ainda não avencei muito além do espanto pelas capas feias. O que Lacan me fez pensar, de verdade, foi de quando minha mãe começou a sair misteriosamente de casa e, depois da sua morte, descobrimos algumas coisas, entre elas, consultas. Isso acionou alguma coisaem mim pra além da dor crônica. Quando seu corpo está em constante danação, ele te obriga a fazer pequenas paradas para reajustar as coisas. Você planeja deitar de leve e dorme quase três horas. Sinto dores fortes em muitos lugares e, quando algo acontece, aciono o médico na surdina. Ela me orienta e eu sigo fazendo as pequenas mudanças no meu cotidiano. Minhas mudanças.
Talvez eu entenda a escolha da minha mãe pelo silêncio.
As perguntas repetidas. Ou somente as perguntas. Tenho toda uma teoria sobre pergunta, resposta e respeito que fica pra outro momento. Mas a verdade é que, em alguns momentos, faço piada das perguntas repetidas mas a verdade é que elas me desestabilizam bastante. Talvez por isso tenha pensado tanto em fazer (outro) retiro de silêncio. A expressão “fazer o uso da fala” está entre minhas favoritas porque mostra que falar é uma escolha. Ouvir também. Entender também. Compreender também. Respeitar também. Tem uns momentos que sinto meu coração bater duro contra o peito. Aí faço uma parada forçada, vejo se foi algo isolado e sigo. Caso contrário, fico parada e vou acompanhando cada empurrão contra o peito como um mantra. Respiro.
Logo quando nasci na condição de mãe, entendi que o puerpério é feito de silêncios e angústias. São muitos vazios. O da barriga que não tem mais bebê; das pessoas que aparecem apenas com presentes e palpites; do bebê que não nos corresponde por ser quem ele é, um bebê. São muitos vazios. Sou mãe há 15 anos e o maior vazio de todos foi do uso da fala. Quando conheci a expressão, eu já conhecia a prática. Foi um corte seco. Num dia, eu estava numa redação rodeadas por amigos e colegas jornalistas; no outro em casa só com um bebê. Eu e o bebê nos comunicando por lágrimas, cólicas e silêncios. Lembro que quando o isolamento da pandemia de covid começou, uma amiga disse (em alguma rede) que agora as pessoas estariam expostas a um puerpério coletivo. Foi um corte seco.
Quanta gente morreu. Quanta gente segue morrendo.
Ainda me impressiona e ofende e indigna quem defende o genocida e seus parceiros. De vez em quando vem aquela lembrança do que foi estar em casa, sozinha, contaminada e evitando ligar a televisão para não saber mais do que eu já sabia de Manaus. Faz faltar ar a lembrança. Foram muitos os cortes secos da pandemia. Todo esse tempo em casa me tirou alguma coisa que não sei ainda.
Trabalho em casa desde antes de ser modinha (foi mais forte que eu, perdão) e estar nesse lugar envolve um grande e prolongado silêncio. Durante muito tempo, tinha um escritório em casa. Entrar, fechar a porta, trabalhar, encerrar o expediente, fechar a porta, sair. Precisei fazer mudanças na vida e migrei de uma casa para apartamento. Esse tem sido um luto pesado. Poderia fazer uma longa explicação sobre azulejos que explodem, gastos excessivos de uber e a necessidade de comunidade para um adolescente. Renunciei ao escritório. Hoje o que tenho é a minha escrivaninha na sala ao lado dos meus livros. Tão criticados. Livros são pesados, sabe? Mudar com livros é um evento em busca de iluminação. Existe um conforto em estar cercada por eles, assim como existe um conforto em poder levantar e ir.
O que desejo agora é levantar e ir.
Hoje fiquei.
Ser a pessoa que fica é ser a portadora das responsabilidades. Quando digo “sou mãe solo” estou dizendo que fiquei. Que sou eu quem assina os documentos na linha onde se lê responsável. Sou a responsável. Por tudo. Quando digo “minha mãe morreu” estou dizendo que fiquei. Fiquei com a cachorra idosa e sistemática, com a máquina de costura, com os pinguins de geladeira e a responsabilidade de ser a única mulher (e tudo o que isso representa) de uma família feita de homens. Não trabalhamos com afeto. Ser a pessoa que fica é ser aquela que namora junto. Porque às vezes, a gente namora sozinha. Sempre fui a pessoa anunciada por Ana Cristina César. Talvez, me diz o luto, seja esse o meu momento de sentar no fundo do barco.
Ainda não sabemos quantos e quais cortes secos vivemos nesses tempos, né? Sinto algo parecido, essa coisa de que perdi algo que não sei. Dói de um jeito esquisito.
Sinto muito que não tenha podido se banhar com sua mãe... É um lembrete pra eu tentar pedir à minha uma ida na praia quando a visitar.
um abraço e até a próxima,