Primeiro, o prólogo:
Dei uma entrevista para a Cynthia Aráujo, do blog Morte sem tabu da Folha de SP, que foi publicada ontem e você pode ler aqui. Essa newsletter é sobre o antes e o depois da entrevista. Nós nos conhecemos através da Michelle Henriques, minha amiga, que disse que nós precisávamos nos ler. Cynthia é autora do excelente A vida afinal, um livro sobre saber morrer e, principalmente, saber viver. Todos os links estarão no fim deste texto. Fato é enquanto eu a lia (e sigo lendo), Cynthia lia o Sabendo que és minha (ProAC | Jandaíra), livro que eu escrevi e que pouco falo e tenho falado nos últimos 18 meses, desde que cheguei em Portugal para fazer um doutorado.
Agora é que nossa conversa começa.
Oi,
faz muito tempo. Não apenas o tempo cronológico, mas muito tempo de todos os outros tempos. Escrevo essa carta da minha mesa de 1,20 comprada na Ikea de Porto. Branca, linhas retas, duas gavetas pequenas e um armário. Muito diferente da minha antiga escrivaninha. Um móvel de madeira maciça, com quase dois metros, muitas gavetas fundas e pesadas e com puxadores de ferro. Nunca escrevi uma newsletter dessa mesa, somente alguns artigos de conclusão de seminário de doutoramento e o rascunho de projeto de tese ou relatório de qualificação. Ela não me diz nada. Assim como não me diz nada esse computador, essa tela em branco, esses dias úmidos e frios. Respondi às perguntas da Cynthia de madrugada, sozinha, duvidando que ainda fosse capaz de escrever. Eu consigo digitar, eu consigo ler, eu consigo articular frases mas escrever, escrever como escrevia, já não consigo. Eu perdi alguma coisa na imigração e não sei como dizer.
Há alguns minutos, gravei dois áudios imensos para uma amiga que podem ser resumidos em: não quero falar porque não quero abrir espaço pra amargura. Passei por tantas coisas nesses últimos 18 meses que não saberia como ou por onde começar, por isso, escolhi começar da minha escrivaninha brasileira. No dia em que a vendi, foi quando entendi do que estava abrindo mão para viver esta vida que vivo agora. Foi tão, mas tão, difícil chegar aqui. Tive que lidar com coisas e situações que nenhuma pessoa deveria lidar e que, espero, um dia poder falar sobre elas. Mas, naquela manhã, quando aquele colecionador de móveis antigos levou minha escrivaninha embora, eu entendi. E chorei, chorei dolorido. Ele andou em volta dela, elogiou sua aparência, sua resistência e força. Os detalhes. Os detalhes, disse ele. Sem parafusos ou pregos, madeira lixada e perfeitamente encaixada. Belíssima. Ele levou meu sustento. Ali escrevi para pagar a vida e viver. Desde então, fui burocrática, reta, cheia de parafusos.
Recentemente fui no médico e ele me receitou remédios, aqueles. Perguntou sobre meus exames alterados (uma vitória pros gordofóbicos) e respondi falando da crise de ansiedade que tinha tido minutos antes da consulta (uma derrota comum às pessoas gordas). Desde então, fluoxetina. Sem conseguir chorar, fui ler Uma vida pequena (if you know, you know) e chorei, mas não por mim. Chorei pelo Jude e pelo Henry, mas precisava muito chorar por mim. O luto da imigração é um luto geminado ao luto pela Morte da Minha Mãe. Eu perdi minha referência de casa, minha identidade. Quando as pessoas me perguntam quando ou se vou voltar o Brasil, eu penso que Minha Mãe Morreu. Eu não tenho uma casa e eu sou a casa de Fifis. Essa é minha única geografia. Como vou escrever sobre isso? Em um mês, meu contrato de bolsa acaba (sem renovação) e já estou procurando emprego por aqui (inclusive me mandem jobs remotos ou comprem meus livros) e pensei, inclusive, em abrir cursos sobre teorias e epistemologias feministas queer, fazer leitura crítica, escrever outro livro, oficinas de escrita criativa, aulas particulares e até uma newsletter semanal para falar com possíveis assinantes sobre a vida de uma brasileira que existe na intersecção das realidades de “doutoranda expatriada” e “imigrante com trabalhos questionáveis”.
Mas como escreve?
Foi assim, com esse sentimento, que respondi às perguntas da Cynthia. Sem saber se estava escrevendo, conversando ou digitando. Dolorida. Então, lembro de uma coisa que aprendi aqui. Quando acontece algo fora do previsto, os portugueses (ao menos os que conheci) perguntam: é suposto fazer algo? Não estou numa crise criativa, esse não é um texto sobre o peso da folha em branco, esse texto é uma grande reflexão sobre as periferias e a essência da pergunta: é suposto fazer algo? Desde que cheguei aqui, coisas da minha vida pregressa foram deixando de existir. Todas doeram de alguma forma, uma mais e outras menos. Algumas se mostraram, de fato, uma perda e outras, um livramento. Mas a sensação é, como explicar?, a sensação é de quando a gente decide arrumar o guarda-roupa, joga tudo na cama e se arrepende em seguida porque tem que, de fato, fazer aquilo. É claro que estar aqui tem um lado bom. Tem pessoas que conheci e que parecem que estiveram na minha vida eternamente e coisas que gosto muito. Até mesmo o que é ruim da universidade me parece bom em alguns momentos. Mas eu sinto falta de casa, sinto falta da Minha Mãe. Ainda mais agora que estou entrando numa jornada chamada “reconhecimento de diplomas estrangeiros”, olha Luciana, só quem viveu sabe e, novamente, me mandem jobs.
Tem uns dias que umas frases tem pipocado na minha cabeça e o desejo de escrever uma coisa sobre esse tempo aqui, sobre o primeiro inverno, sobre aquele apartamento sem janelas, o arroz sem feijão, o sol sem calor e o choque. Mas escrever parecia algo muito muito muito distante até ontem. A publicação da entrevista e a resposta das pessoas me permitiu acessar um lugar que parecia esquecido, uma outra vida nessa vida que não sei viver. Aqui eu penso muito na morte. Penso quando sinto minhas dores musculares e preciso de receita médica para ter acesso a um relaxante muscular; penso quando escrevo meu relatório de tese; quando participo de seminários e colóquios e apresento trabalhos; penso na morte quando tenho que me despedir da Beroka, uma cachorra de 16 ou 17 anos, que era da Minha Mãe e veio morar conosco e morreu no segundo dia de 2025; penso nos meus exames alterados e na minha dificuldade de ser leve e rir e falar desse luto. Mas também penso na vida porque morte e vida são inseparáveis. Penso no que fazer neste dia em que há sol mas não há calor, em como pagar o aluguel, em como procurar uma editora pro meu novo livro, em como escrever esse livro. Em como me escrever nesse mundo, nessa casa que sou eu. Do que eu falo quando falo de imigração? O que a gente perde quando a gente imigra? Não sei o que fazer, o que escrever.
É suposto fazer algo?
Instagram da Cynthia Araújo e leia seu livro A vida afinal.
Para ler o Sabendo que és Minha, venha aqui.
Moro em Coimbra e se estiver por aqui, vamos tomar um café.
achei fantástico
Vamos tomar um café virtual Fabrina? Também morreu minha mãe e ano passado meu pai , vazio profundo e também já vivi o luto de morar em Portugal, estudei e desisti de Coimbra e acho que dá um papo bom, nossos vazios são semelhantes.