Já revisei esse parágrafo tantas vezes quanto você possa imaginar e, em todas elas, tentei explicar minha ausência, meus silêncios, o que tenho sentido, o que está acontecendo desde 31 de março de 2023 e falhei miseravelmente. Mas, vamos lá.
entrei (passei? fui aceita?) no doutoramento de Estudos Feministas da Universidade de Coimbra. Sei disso desde o final de abril, quando foi divulgada a lista provisória e meu nome estava lá. Um choque, meninas. Foram semanas de espera até a lista definitiva e, então, a matrícula. Feito isso, comecei um processo de reorganizar a vida pensando nessa mudança como algo real. Estudar nessa universidade é algo que sonho desde 2011, quando estive lá. Na época, fui apresentar um trabalho em Braga e aproveitei para conhecer universidades, igrejas e pastéis de nata de Portugal. Queria contar com detalhes como foi sair do interior do Mato Grosso do Sul para o interior de São Paulo e deixar a Fifis na casa da Minha Mãe e seguir pra outra cidade e então outro país. Sozinha. Foi uma viagem de 11 ou 12 dias, não me lembro ao certo do tempo cronológico. Lembro de ter acompanhado uma defesa de doutoramento na Universidade de Coimbra e sair de lá pensando que queria aquilo pra mim. Decidi que voltaria como aluna e falo disso desde então. Quem me conhece sabe, Tadeu. Consegui em 2023. Posso explicar esse intervalo de 12 anos dizendo que sou mulher.
Entre o dia de hoje e aquela defesa, vivi situações determinantes para qualquer pessoa. Mas, numa sociedade machista como a nossa, essas mesmas situações transformam a vida de qualquer mulher em terra devastada. Pro processo de seleção, precisei escrever uma carta de motivação. Foram meses e páginas e rascunhos e arquivos para traduzir em poucas palavras a consciência de que venho de uma família comum a muitas de nós: as mulheres ficaram e não estudaram. Na vida real, sonhos e mulheres são meio que incompatíveis. Nesses anos, conheci outros lugares, fui aluna ouvinte do doutorado numa universidade por UM DIA (talvez meio período) e saí pensando algo perturbador: e se eu me desse o que sonhei?
O processo seletivo foi angustiante porque envolvia fazer exatamente o proposto: apenas o que sonhei. Não tentei nenhuma outra universidade, nenhum outro curso. Todos os dias duvidei dessa decisão. Imagino que as mais prudentes esperassem outra atitude e as mais emocionadas outra postura. O que eu queria era cumprir o acordo que tinha feito comigo: o que foi sonhado. O que eu sei, de verdade, a partir dessa experiência é que fazer o sonhado é aterrorizante. Desabafei com poucas pessoas sobre o processo e ouvia (e dizia) que deveria ter um plano B. Concordo. Mas escondi delas e falava apenas e tão somente na terapia que, até ali, o vivido era o plano B.
Quando falo sobre ser mulher, ser mãe, ser mãe solo e ser mulher mãe solo brasileira falo, em essência, sobre viver no plano B de forma constante e consistente.
Foram anos de análise pra entender que eu estava adoecida de uma doença chamada “o que dá”. Dorme o que dá, come o que dá, vive o que dá. Enquanto escrevo também assisto a série As pequenas coisas da vida, na Star+. Baseada no livro da Chery Strayed (que também escreveu Livre), a série conta a história de Claire, uma mulher que segue juntando cacos de si enquanto responde cartas de leitoras num jornal. No episódio 5, há uma cena em que Claire escreve, numa de suas colunas, O que significa quando a pior coisa que poderia acontecer realmente acontece e te faz paralisar no meio do caminho? Então ela segue contando sobre a morte da mãe e, como mesmo morta, a mãe se formou na faculdade e ela não. A base do idioma das filhas de mães mortas é saber que as mães nunca morrem mesmo que elas voltem a morrer todas as manhãs. O subtexto da morte da mãe é de uma profundidade sem fim.
No dia da matrícula, a vida de antes já era outra coisa. Já havia saído do apartamento onde morei no ano anterior, estava numa casa nova, cercada por caixas de papelão com as coisas que logo logo serão vendidas porque essa vida que existe aqui, enquanto escrevo, também vai deixar de existir em breve.
No dia da matrícula, a caixa d´água quebrou. Talvez seja o jeito que penso, o fato de escrever ou a análise, mas gosto muito dessas imagens e simbologias e relações. Talvez por isso esteja pensando no vizinho que se mudou pro apartamento ao lado, dois ou três dias depois de mim e se foi embora dois ou três dias antes de mim. Nunca trocamos muitas palavras mas será que dividimos as mesmas insatisfações com aquele luga?
No dia da matrícula, eu estava sentada na mesa da cozinha observando 1) o rapaz do frete e seu ajudante descendo com todo descaso possível minhas coisas do caminhão e 2) o homem trocando a caixa d’água da casa e pedindo pra usar meu celular o tempo todo para pedir, a cada ligação, uma peça nova. No fim, descobri que ele estava bebendo enquanto subia e descia do telhado. Porque agendar a mudança para um dia importante? O agendamento foi pro dia anterior. Mas tanta coisa aconteceu e espero escrever sobre elas um dia porque tudo isso (e tantas outras coisas) resultaram numa crise de choro no meio do mercado enquanto decidia entre marmita com ou sem arroz integral. O tweet abaixo se tornou pensamento recorrente:
Desde que contei para algumas pessoas que havia passado/entrado/sido aceita em no doutorado fui exposta ao fenônomeno do “olha o que você está vivendo! você TEM QUE estar feliz. SORRIA”. Quem disse que não estou? Estou feliz e também angustiada, assustada, eufórica, enlutada, raivosa, cansada, triste e consciente de cada coisa que tenho sentido nesses dias. Respeito muito cada uma das minhas emoções e tenho dado a elas o espaço que elas pedem e no momento em que elas pedem. Mudar é um assombro, sonhar é um assombro e nenhum assombramento é simplório. Tem momentos em que simplesmente me sento e me permito não saber.
Tem uma coisa de crueldade no imaginário de que conseguir o que se sonha é tão somente alegria e realização. Muitos sorrisos precedem crimes. Executar o que se sonhou dá trabalho. E, acredite em mim, o verbo executar é preciso. Ainda se faz necessário pagar contas (todas), vender o acervo de livros (sim) e cuidar da burocracia. Sonhar é burocrático. Inclui apostilamentos de haia, idas infinitas aos correios e cartórios. Sonhar é romper pactos que pressupõem que você estará sempre disponível e disposta e compreensiva. Sonhar exige consciência de si e capacidade de sustentação do assombro. Sonhar cansa porque sonhar é prático. Talvez por isso eu tenha dedicado muito do meu tempo aos filmes de terror, às assombrações e à incompreendida raiva das mulheres.
Como dito muito sutilmente, a vida continua aqui ou acolá e para pagar esse sonho, vendo livros escritos por mim e do meu acervo. Você pode consultar os preços aqui e concluir a compra pelo e-mail fabrinam arroba gmail ponto com, pelas DMs do meu Instagram ou Twitter. Os preços foram definidos seguindo a Estante Virtual (procurei sempre manter o valor abaixo do mais barato considerando edição, estado e afins) e o valor do frente é a parte. Se puder comprar livros, agradeço. Se puder compartilhar, agradeço. Se puder mandar um pensamento bom, uma mensagem de carinho, contar sua experiência como imigrante, indicar um lugar pra morar em Coimbra ou me dar um salve, estou por aqui. Assombrada.
obrigada e jajá voltamos ao normal (seja qual for)
Fabrina